
O que não falta aqui no blog é história de redação. Recebi um monte desde que pedi ajuda aos amigos, ex-colegas de jornal. E lembrei de outras, de muitas mesmo. O estoque continua crescendo e aos poucos serão desovados novos causos. Ô raça!
Antes das 20 novas histórias, que estão aí embaixo, vou reproduzir uma muito boa, diretamente do romance “O Ponto da Partida” (Record, 2008), de Fernando Molica. Aconteceu mesmo e o personagem é um gigante da reportagem policial de “O Dia”, que no livro é identificado como João Carniça.
A chegada de novos repórteres, formados pelas faculdades de jornalismo, que costumavam escrever melhor (nem sempre isso é verdade) do que o pessoal da antiga, foi meio humilhante para o João, que ditava para o redator o que havia apurado na rua. Com vocês, o texto do Molica:
“Ficava meio triste quando via aquelas mocinhas bonitas, novinhas, redigindo o próprio texto. E pediu para começar a escrever. Conversou com o redator, tomou algumas lições, faça isso, aquilo, evite os adjetivos, não precisa dar sempre o nome do delegado, do sargento, do soldado, cuidado com as acusações. E, claro, não repita palavras, isso empobrece o texto, cansa o leitor.
O João ouvia, anotava, arrumava aquelas coisas todas na cabeça. Ficou impressionado com aquela história de não repetir palavras: “Ah, é assim, é?”. E num belo dia foi fazer uma matéria sobre o assassinato de um pescador, o cara, sei lá, morava em Niterói, parece que tinha sido esfaqueado pela mulher, um negócio desses. Tinha bebido demais, o de sempre. Como diria o João, consta que – ele também gostava muito do “consta que” – a dona Maria, a mulher do pescador, estava meio puta naquele dia, cansada de trabalhar, de cuidar das crianças, de aturar ordem de marido bêbado.
O sujeito chegou em casa tarde, trocando perna, falando enrolado, com aquela penca de peixe fedorento nas mãos, mandando a mulher ir pra cozinha cuidar do jantar. E, ainda por cima, ameaçando encher a coitada de porrada. Foi o limite. Baixou um caboclo nela, que perdeu a paciência, pegou um facão e, vupt!, abriu um rasgo deste tamanho na barriga do velho homem do mar.
O João Carniça foi lá, enrolou os policiais, conseguiu conversar com a mulher, falou com os filhos, apurou tudo, todos os detalhes. Chegou na redação orgulhoso, nariz meio empinado. Aproveitou que era um plantão, tinha menos gente trabalhando, o seu redator estava de folga. Resolveu escrever o texto. E ia pensando, nada de enfileirar nomes de policiais, nada de adjetivos e, principalmente, nada de repetir palavras. Sentou-se diante da máquina e taquitiquicati, pá-pá-pá, tuc-tuc-tuc, pow, pow. Saiu catando milho, dando porrada na Remington. O cara chegava a suar, coitado, de tão nervoso. Sabia que a redação estava de olho nele, todo mundo dava um jeito de levantar, ir no café, passar por ali para ver como o João se virava naquele trabalho de parto.
Depois de quase duas horas, ele tirou a última lauda da máquina e se levantou. A lata de lixo estava cheia de laudas amassadas, rasgadas. Mas ele, coitado, sorria orgulhoso, aquele sorrisão bonito, que mostrava o canino de ouro.
Foi então ao editor, acho que era o Magalhães, e entregou as duas laudas, dobradinhas. “Taí, chefe, é só dar uma lida e mandar pra oficina”. E o Magalhães, tenho quase certeza que era ele, começou a ler. O lide, o início da matéria, estava até correto, o problema foi na hora em que ele descreveu o momento do crime, a porra da preocupação de não repetir palavras.
Ficou mais ou menos assim: “O pescador entrou na cozinha com os peixes nas mãos e disse para a esposa: – Mulher, frite os mesmos!”.
Antes das 20 novas histórias, que estão aí embaixo, vou reproduzir uma muito boa, diretamente do romance “O Ponto da Partida” (Record, 2008), de Fernando Molica. Aconteceu mesmo e o personagem é um gigante da reportagem policial de “O Dia”, que no livro é identificado como João Carniça.
A chegada de novos repórteres, formados pelas faculdades de jornalismo, que costumavam escrever melhor (nem sempre isso é verdade) do que o pessoal da antiga, foi meio humilhante para o João, que ditava para o redator o que havia apurado na rua. Com vocês, o texto do Molica:
“Ficava meio triste quando via aquelas mocinhas bonitas, novinhas, redigindo o próprio texto. E pediu para começar a escrever. Conversou com o redator, tomou algumas lições, faça isso, aquilo, evite os adjetivos, não precisa dar sempre o nome do delegado, do sargento, do soldado, cuidado com as acusações. E, claro, não repita palavras, isso empobrece o texto, cansa o leitor.
O João ouvia, anotava, arrumava aquelas coisas todas na cabeça. Ficou impressionado com aquela história de não repetir palavras: “Ah, é assim, é?”. E num belo dia foi fazer uma matéria sobre o assassinato de um pescador, o cara, sei lá, morava em Niterói, parece que tinha sido esfaqueado pela mulher, um negócio desses. Tinha bebido demais, o de sempre. Como diria o João, consta que – ele também gostava muito do “consta que” – a dona Maria, a mulher do pescador, estava meio puta naquele dia, cansada de trabalhar, de cuidar das crianças, de aturar ordem de marido bêbado.
O sujeito chegou em casa tarde, trocando perna, falando enrolado, com aquela penca de peixe fedorento nas mãos, mandando a mulher ir pra cozinha cuidar do jantar. E, ainda por cima, ameaçando encher a coitada de porrada. Foi o limite. Baixou um caboclo nela, que perdeu a paciência, pegou um facão e, vupt!, abriu um rasgo deste tamanho na barriga do velho homem do mar.
O João Carniça foi lá, enrolou os policiais, conseguiu conversar com a mulher, falou com os filhos, apurou tudo, todos os detalhes. Chegou na redação orgulhoso, nariz meio empinado. Aproveitou que era um plantão, tinha menos gente trabalhando, o seu redator estava de folga. Resolveu escrever o texto. E ia pensando, nada de enfileirar nomes de policiais, nada de adjetivos e, principalmente, nada de repetir palavras. Sentou-se diante da máquina e taquitiquicati, pá-pá-pá, tuc-tuc-tuc, pow, pow. Saiu catando milho, dando porrada na Remington. O cara chegava a suar, coitado, de tão nervoso. Sabia que a redação estava de olho nele, todo mundo dava um jeito de levantar, ir no café, passar por ali para ver como o João se virava naquele trabalho de parto.
Depois de quase duas horas, ele tirou a última lauda da máquina e se levantou. A lata de lixo estava cheia de laudas amassadas, rasgadas. Mas ele, coitado, sorria orgulhoso, aquele sorrisão bonito, que mostrava o canino de ouro.
Foi então ao editor, acho que era o Magalhães, e entregou as duas laudas, dobradinhas. “Taí, chefe, é só dar uma lida e mandar pra oficina”. E o Magalhães, tenho quase certeza que era ele, começou a ler. O lide, o início da matéria, estava até correto, o problema foi na hora em que ele descreveu o momento do crime, a porra da preocupação de não repetir palavras.
Ficou mais ou menos assim: “O pescador entrou na cozinha com os peixes nas mãos e disse para a esposa: – Mulher, frite os mesmos!”.
3 comentários:
Maravilha, camarada Ze Sérgio! Mande mais histórias, mais, mais!
Eu conheço o gigante. Um doce de pessoa.
Estas histórias poderiam ser o começo de um livro, Zé Sergio. Uma "diliça"!
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