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terça-feira, 27 de julho de 2010

DIVAS ENSANGUENTADAS NO BANHEIRO DA RÁDIO


Em 1973, com ditadura e milagre econômico, os jornais eram proibidos de quase tudo. Foi o ano em que comecei na profissão, trabalhando em dois jornais. Das 9 ou 10 da manhã até 4 da tarde, no Diário de Notícias, e das 5 até 10/11 da noite, no Jornal do Brasil.
Foi um breve período, pouco mais ou menos de um ano no nº 114 da Rua do Riachuelo, mas tão estimulante quanto meu começo no JB. Talvez ainda mais porque no DN fui estagiário, depois repórter da Geral, ganhando... o quê mesmo? Ah, sim! Ganhando experiência.
Salário não havia. O jeito era recorrer a vales, que eu peguei poucos, pois tinha medo de ouvir um não. O jornal, apesar de dirigido por gente íntegra, a começar pelo chefe da redação Múcio Borges, a amabilidade em pessoa, não tinha dinheiro para pagar todo mundo, ainda mais gente nova e inexperiente, que devia estar agradecida por ganhar cancha.
Passei um período fazendo polícia, ora era escalado para cobrir assuntos religiosos (nas férias da Marinilda Marchi, o nome da bela na época), ora fazendo matérias para outras editorias.
Eu tentava caprichar tanto nos lides que a coisa não fluía. Tinha que ouvir calado gozações maravilhosas como a de certo editor chamado João Rath: “Elegancinha, você é um gê-ni-o! Há muito tempo não vejo esse erro!”. Mas essa história já contei em algum lugar aí pra trás, neste mesmo blog. Ou de ter a primeira matéria assinada (sobre o pintor João Câmara) totalmente reescrita por outro colega, o tcheco Luís Carlos Cabral.
Enfim, eu devia melhorar. Como melhorar? Arranjando rapidamente um furo de reportagem. Acho que eu sonhava com o editor-chefe gritando “Parem as rotativas! Parem as rotativas!”. Se não sonhei com isso, deveria.
Eis que, do nada, surgiu minha oportunidade. Estava de plantão no jornal, acho que num sábado, quando bateu o telefone. A linha estava péssima mas deu para ouvir um pesquisador ensandecido dizendo que Emilinha Borba e Marlene estavam jogadas no chão de um banheiro da Rádio Nacional.
A ligação caiu e o sujeito não tornou a ligar. Mas a afobação de iniciante não estava nem aí para confirmação de algo que eu já via estampado na primeira página. E a imaginação fértil do mesmo iniciante fez o resto. Eu sabia desde criancinha da disputa encarniçada entre as duas cantoras e seus respectivos fãs-clubes e pensei logo no pior.
O pior era o melhor para mim: um furo.
Pedi fotógrafo e motorista e seguimos para a Praça Mauá nº 7. O porteiro, que devia ser também um novato, auxiliar de portaria escalado para trabalhar no fim de semana, ficou assustado quando perguntei se as rainhas do rádio haviam saído no tapa e estavam se esganando no chão do banheiro da emissora.
Como viu que eu estava acompanhado por um sujeito fortão, o fotógrafo Lúcio Marreiro (que não acreditou na história, mas assim mesmo foi na onda para curtir com a cara do foca), e que havia um carro de reportagem na porta, nos deixou entrar.
Não sei como, ninguém nos parou, ainda não havia essa frescura de crachá sendo pedido a todo instante. Fomos até o andar da emissora. Passamos pelo auditório, uns e outros que estavam em um estúdio pareceram estranhar, mas também não ficaram no caminho.
“O que vocês devem estar procurando está logo ali”, disse um camarada de cabelo ruivo, com certeza pintado, quase sussurrando. Era a minha fonte, com certeza.
Chegando ao local do crime, o tal banheiro, nenhum vestígio de divas ensangüentadas. Mas realmente estávamos diante de um crime: rolos de gravação e documentos apodrecidos empilhados entre a latrina e a pia. O fotógrafo explodia de tanto rir. A matéria só foi sair na terça ou quarta-feira seguinte, como nota de colunão, para irritação do meu chefe de reportagem, o gente boa Alfredo Schleumer, que fez questão, no dia seguinte, de me entregar duas cartas de leitores indignados com aquilo. Um deles sugeria que aquelas caixas e rolos fossem imediatamente levados para o Museu da Imagem e do Som, que incorporou no ato o acervo fedendo a xixi.
Não durei muito no emprego. Logo arranjei outro, numa agência de notícias, onde eu recebia, sim, todo final de mês, além de continuar na Editoria Internacional do JB.
Foi uma boa saída, apesar da opinião contrária do meu chapa João Batista de Abreu, que foi para o Diário de Notícias dias depois de minha saída.
"Por que você não volta pra lá? Entrou um grupo novo, com dinheiro. Quem manda agora é o Olímpio Campos".
Até deu vontade.
Semanas depois perguntei ao João Batista como estava no emprego do DN.
"Tá ótimo, tô aprendendo muito, fui até aumentado em 30%!".
Êpa! O que foi que eu perdi...
"Só tem uma coisa, Zé", fez questão de dizer o João. "Fui aumentado em 30% e devo ter outro aumento qualquer dia desses, mas o Olímpio não paga!".
Escapei, assim, de entrar na famosa fila do banco dos credores do Olímpio, onde só recebia o primeiro da fila. Quem chegasse primeiro ao guichê, levava.
O novo chefão do velho jornal dos militares e das professoras inventou o famoso "cheque olímpico". Só recebia o papel quem corria e chegava na frente.
Na vitrolinha Philco, "Fanzoca do rádio", de Miguel Gustavo, na voz do palhaço Carequinha.
Extra! Extra! O blogueiro se enganou. Os horários não conferem. De manhã eu tinha aula na UFF. Entrava no DN pouco depois do meio-dia (saía um pouco mais cedo da última aula, quando tinha aula, e partia voado de Niterói para a Riachuelo). Quando surgiu a oportunidade de me profissionalizar no Diário de Notícias, fiquei só mais um mês, porque estava de férias escolares. Saí logo depois. O horário da agência era quase o mesmo do estágio, com uma hora a mais (cinco horas) e por isso deu pra ter esse segundo emprego no tempo do IACS. A idade é uma eme.

segunda-feira, 26 de julho de 2010

WILSON GREY E JOHN WAYNE NA TERRA DO SOL



A expressão de Wilson Grey era a mesma, e a idade talvez seja também. Em 1975 ou 1976, sei lá, o grande buchicho na minúscula Travessa Ator Jayme Costa era a competição sobre quem seria o ator recordista de filmes do planeta. Nós, do curso de Cinema da UFF, por motivos patrióticos, sentimentais, corporativistas, ideológicos e etílicos, torcíamos descaradamente pelo eterno vilão do cinema nacional. Ainda mais porque seu competidor direto era John Wayne, o cowboy americano, o sobrinho favorito do Tio Sam e do Tio Patinhas.
Enfim, Wilson Grey era a esquerda latino-americana, e John Wayne, o capitalismo imperialista. A competição ganhou as páginas do Caderno B e de outros suplementos culturais. A coisa ficou animada.
Tudo bem que outro brasileiro, o grande José Lewgoy, também era um vilão, só que refinado, chefe de gangue, mentor de crimes horrendos, por vezes até usando monóculo.
Wilson Grey era o vilão pobre, suburbano, de má formação dentária, semialfabetizado que tentava “falar difícil”. Lewgoy era um grande ator e cansou de atuar em papéis principais. Grey foi o melhor dos nossos coadjuvantes e só uma vez na vida (“O mágico e o delegado”) teve o papel principal.
Virou uma espécie de programa de alguns alunos de Cinema dar uma passadinha na travessinha da Cinelândia, onde atores e técnicos se reuniam para saber das novidades – quem estava filmando, onde poderia pintar trabalho etc.
Nosso barato era entrar na conversa daqueles malandros velhos, tentar uma vaguinha qualquer nos filmes. A coisa sempre terminava ali bem perto, no bar Tangará, para fechar o fim de tarde com as primeiras doses da noite.
Foi nessa época que meus chapas Albertino da Paz Ferreira e Chico Moreira tiveram a ideia de fazer um filme no Jockey Club, na Gávea. Me chamaram para cuidar do som, pilotando um sensacional e moderníssimo gravador Nagra. Moderníssimo foi modo de dizer.
O título da pantalla seria “Ponta e Placê”. Tomada a decisão, pegamos o Nagra 4 e a Arriflex BL 16 mm que a Embrafilme sempre emprestava aos alunos da UFF e partimos rumo ao prado. Foram vários dias de filmagem. Falamos com treinadores, jóqueis, bilheteiros que sempre queriam nos passar uma barbada (davam falsas barbadas para todos, na esperança de ganhar um qualquer, caso o chute desse certo) e até com o Bolonha, figura imponente e folclórica do lugar, neto ou bisneto do Duque de Caxias e eterno adversário da família Paula Machado.
Minha geração foi marcada por muitos projetos irrealizados e o “Ponta e Placê” foi um deles. Ficou só no copião, esquecido em algum canto do IACS (Instituto de Artes e Comunicação Social) da UFF.
O diretor Albertino sumiu da área por uns tempos, depois resolveu ficar somente com seu emprego no Banco do Brasil. O fotógrafo e montador Chico Moreira conheceu Sílvio Tendler, com quem trabalhou nos documentários sobre Juscelino e Jango. E eu resolvi que seria só jornalista, que esqueceria aquele negócio de virar roteirista.
Mas esse projeto, mesmo não tendo ido adiante, teve um “the end” à altura. Numa das filmagens na parte externa do hipódromo, perto da bilheteria, havia um telão para que os apostadores que não queriam ver a corrida lá dentro, nas cadeiras, pudessem acompanhar os resultados de cada páreo ali fora.
Adivinhem quem estava lá. Ele mesmo, Wilson Grey.
Malandro de raciocínio rápido, bastou ver aqueles três garotos empunhando Arriflex, Nagra, pau de luz e claquete para ficar no enquadramento perfeito. Coisa de profiça. Olhando o telão, atento, mordendo a haste dos óculos, simulou que havia acertado o cavalo ganhador e deu até um pulo para comemorar.
“Corta!”, disse o Albertino, emocionado com a cena.
No que o velho ator vibrou:
“Eu, eu, eu! John Wayne se fodeu! Ganhei, porra! Com este, são 251 filmes!”.
Na verdade, não lembro o número de filmes que ele citou. O fato é que John Wayne teria feito 250 filmes, quase 99% deles como ator principal. Dane-se! Wilson Grey correu por fora, passou o alazão ianque e venceu por uma cabeça, sem necessidade de esperar o photochart para conferir.
Quer dizer, foi o que pensamos na ocasião.
Infelizmente, Wilson Grey morreu puto da vida com essa história de recorde. Parece que do John Wayne ele ganhou mesmo, em quantidade de filmes. Mas na última volta, surgiu do nada, em outra raia, um fdp de um ator indiano, pioneiro daquilo que ficaria mais tarde conhecido como Bollywood.
Superou, por um ou dois filmes, o verdadeiro homem que matou o facínora e o inimigo de Oscarito e Grande Otelo.
E ainda deve ter comemorado à moda Grey:
“Eu, eu, eu, o Ocidente se fodeu!”.
Na trilha sonora, "Os Bohemios", de Anacleto de Medeiros, com o Art Metal Quinteto.

BAR NATAL, UM FILME FEITO SOB EFEITO DE ÁLCOOL


O filme "Bar Natal", dirigido por Wilson Paraná, na época aluno do curso de Cinema da UFF, pode ser encontrado no Youtube. Os frequentadores habituais, 30 anos mais novos, falam bobagens (o som é péssimo, ainda bem) e bebem cerveja e destilados em quantidades absurdas. O âncora da esbórnia é o Lauro Faria. O bar fechou dias depois dessa filmagem para ser demolido e dar lugar a um shopping. Foi divertido enquanto durou.

GP POR GP, PREFIRO OS CAVALINHOS

Automobilismo não é esporte. É um negócio que movimenta muito dinheiro. Felipe Massa e Fernando Alonso ontem reviveram o papelão de Rubens Barrichello e Michael Schumacher em 2002. Falam tão mal do turfe mas não vejo diferença. Foi escandalosa a atitude da Ferrari enquadrando o piloto brasileiro. No turfe, até troca de cavalos já houve, mas acho um negócio – sim, um negócio – mais divertido. Já fui chegado ao turfe no tempo em que fazia o curso de Cinema da UFF e um colega teve a ideia de fazer um curta em 16 mm no hipódromo da Gávea. Durante alguns anos, andei por lá. Ganhei algumas vezes, sempre apostando em pangarés com nome de filme. Era solteiro e, certa vez, voltei para casa com o dinheiro do aluguel tirado das patas de um azarão chamado High Noon. Parei antes de me viciar, mas bem que eu gostava de ver os cavalinhos na pista. Havia muita fofoca. Por exemplo, no dia do aniversário de determinado treinador, o G., o cavalo montado pelo jóquei P. sempre vencia no terceiro ou quarto páreo. Fraude, sim, porém café pequeno diante desse episódio acintoso da Ferrar e dos valores envolvidos.

quarta-feira, 26 de maio de 2010

NA FESTA DO PAULO, MAIS UM MICO DE MINHA AUTORIA

Tem gente que gosta de ouvir o bigode crescer, outros preferem farrear. Pertenço a este segundo grupo. Respeitando quem gosta de comidinhas francesas em pratos rasos, meu negócio é feijoada – só de escrever isso, já noto uma leve oscilação da taxa do ácido úrico. Pagar mico também é comigo: vivo rindo de mim mesmo. Quem ainda não se deu conta de que, residentes deste terceiro planetinha fuleiro de quem vem do Sol, sentido Júpiter, não passamos, nós terráqueos, de futuros defuntos que apenas estão pelaí, de bobeira, enquanto não descem os sete palmos? Futuros? Nem tanto. Tirando o Niemeyer, que não é leitor desse blog, quem mais se habilita a fechar a conta dos dois galos? Dos vivos hoje, só ele mesmo e alguns moradores dos Montes Urais passaram do centenário.
A vida é curta. Meu chapa Paulo Eduardo Neves é um que sabe disso. Completou quarentinha um dia desses e, em vez de fechar uma casa de festa cheia de pinguins servindo canapezinhos, proseccos e outras porcarias, armou a quizumba no meio da rua, no caso a Ouvidor, num domingo sem pagodeiros. Foi com sua linda Cris e os dois pimpolhos, Seu Natal e Seu Candeia. Em vez de espumante, o que teve foi cerveja e bons produtos extraídos da cana, que além do etanol também é bom combustível. Na roda de samba, comandada pelo Galotti, o homem-repertório, lá estavam o garoto Pratinha com seu sete cordas, e ainda o pandeiro, o tantã, o tamborim e o surdo revezados pelos tarimbados André Pressão, Almir e Declarck. Nas imediações, o Digão da Folha Seca, corresponsável (esta nova ortografia é de matar) pela organização da farra (farra também se organiza), e um monte de gente boa que foi chegando e contribuindo para o sucesso da carraspana etílico-musical.
Lá pelas tantas, eu mais pra lá do que pra cá, metido pra cacete com um tamborim vermelho que consigo tocar melhor do que a maioria dos percussionistas do Tibete, novamente pago um mico, sem perceber que minha querida amiga portelense Bia estava filmando aquela atormentada, mas nem por isso menos elogiada, performance.
Hoje, este blog é autocentrado, sim, e aperto a tecla F.
Com vocês, eu... e, ahá!, mais um mico de minha autoria!
O samba tocado no momento é “Loira Luzia”, de Nei Lopes:
“No dia em que a loira Luzia pôs fogo no morro
Sargento Garcia deu tapa no Zorro
E a Rua do Chichorro mudou de lá do Catumbi
Um gato que estava num poste roubando energia
Comeu um cachorro, crente que comia
Uma gata escaldada, na laje lá no Tuiuti
Foi nisso que uma coisa estranha baixou no terreiro
Cabeça de área, corpo de bombeiro
Uma perna de três e dois dedos de prosa,
Orelha de livro, um pé de conversa (era um espantalho!)
A boca de fumo, um dente de alho
Mané, que trabalho, que coisa horrorosa!
O carro da polícia ia saindo ileso
Mas acabou preso no engarrafamento
E o da funerária morreu a caminho
De um sepultamento
O carro do bombeiro pegou fogo
E a ambulância chamou o socorro...
No dia em que a loira Luzia pôs fogo no morro”.

domingo, 28 de março de 2010

JOSÉ E BEATRIZ NA SÃO PAULO NOS ANOS 50


Na virada dos anos 40/50, José em nada lembrava mais o jovem pistoleiro de Maceió. Tinha duas imobiliárias, carro americano do ano, uma bela casa e dois filhos. O romance com Beatriz, com quem se casara, agora tinha como cenário a São Paulo que crescia desordenadamente. Ele, galante. Ela, encantada. As fotos posadas, compradas de lambe-lambes, contam os últimos momentos felizes do casal na cidade louca que logo completaria seu quarto centenário, no mesmo ano da separação. Ponto final.

sexta-feira, 26 de março de 2010

JOSÉ E BEATRIZ, ATÉ O DIA EM QUE PARAR O CORAÇÃO


JOSÉ, alagoano nascido em 1917, tinha menos de 10 anos quando os pais foram assassinados, supostamente pela família da própria mãe, Francisca, moça de família rica de Pernambuco que não aceitou o casamento dela com o Artur, sujeito pobre de sangue indígena.
BEATRIZ, sergipana nascida em 1924, tinha pouco mais de 10 anos quando sua mãe, Mirtes, tida como louca, morreu ainda jovem, deixando seis filhos (outros quatro ou cinco morreram no parto ou crianças de colo). A loucura da mãe de Beatriz, provavelmente, não passava de histeria, mas nos anos 1930 isso não era conhecido.
Depois da matança, por ser o filho mais velho, JOSÉ teve que fugir de São Miguel dos Campos e foi parar na casa do governador de Alagoas, que era tio dele. O governador matriculou-o numa escola agrícola e, ainda adolescente, deu-lhe o primeiro emprego, na pistolagem.
BEATRIZ teve mais sorte: Lourdes, prima de sua mãe, veio de Penedo, do outro lado do São Francisco, para criar a filharada de Mirtes, lá em Propriá, na outra margem do rio. Acabou casando com Antônio, pai de Beatriz, e foram muito felizes. Antônio era filho de um judeu holandês e de uma negra. Mirtes era filha de um português e de uma cabocla. Lourdes tocava piano e acordeon. Antônio tinha um bar que era também restaurante e salão de bilhar e bancava o jogo de roleta na cidade. Antônio era um homem pacífico e querido na cidade.
Um dia, JOSÉ matou por engano um homem rico e teve que fugir de Alagoas. Passando por Sergipe, casou com Beatriz contra a vontade de Antônio. Os dois fugiram.
Tiveram uma filha em 1945 e um filho em 1951.
No final dos anos 1940 e início da década seguinte, JOSÉ enriqueceu na construção civil, nos tempos dos prefeitos Prestes Maia e Faria Lima. Perdeu o dinheiro fazendo maus negócios.
Moravam no bairro paulistano da Aclimação. BEATRIZ sabia das amantes de José e um dia cismou que ia trabalhar. Foi aeromoça da Cruzeiro do Sul. José não concordou e em 1954 estavam separados.
Em 1960, JOSÉ votou em Jânio Quadros. BEATRIZ votou no Marechal Henrique Lott.
JOSÉ foi para Iturama, no interior de Minas, e virou sócio de uma fazenda na região do Triângulo. Quando a propriedade foi vendida em 1966, os sócios chamaram o Exército alegando que ele estava organizando uma guerrilha. Mas José era de direita, janista ferrenho, e convenceu os militares que foram prendê-lo de que tinham armado para ele.
BEATRIZ, depois da separação, veio morar no bairro de Copacabana, no Rio. Demitida pela empresa aérea, tornou-se funcionária pública federal. Para complementar o orçamento doméstico, aprendeu a costurar copiando os moldes de uma revista alemã de moda, Burda. Como levava jeito para a coisa, teve freguesas ricas, entre elas duas embaixatrizes.
JOSÉ, depois de perder o que tinha no Triângulo Mineiro, foi administrar dois latifúndios em Jussara, Goiás. Tinha uma fazendola entre as duas fazendonas. Casou pela segunda vez, com a Miriam, filha de russo com alemã, e teve um terceiro filho, no bairro de Vila Helena, hoje Moema. José entendia muito de gado. Nunca fumou e nem bebeu. Dormia às oito da noite e acordava antes das quatro. Morreu nos anos 80, quando o coração parou.
BEATRIZ não casou novamente, mas viveu alguns anos com um colega do serviço público, cuja família morava no bairro da Abolição, onde o filho do primeiro casamento foi morar com os avós postiços. Não tiveram filhos. Beatriz tinha um francês razoável e lia muito. Fumava um cigarro atrás do outro e, quando bebia, só gostava de vinho. Quando se aposentou, passava as noites em claro, pilotando a Singer de pedal. Morreu nos anos 90, também porque o coração parou.
A gente vive até o coração parar. Aprendi isso com meus pais, que estão na foto.
Na caixinha musical, o clarinete de Luiz Americano e o acordeon de Chiquinho em Intrigas no boteco do Padilha.

segunda-feira, 25 de maio de 2009

OLHA QUEM CHEGOU: A TURMA DA MARÉ MANSA!

"A carteira de trabalho, pelos lançamentos que recebe, configura a história de uma vida. Quem a examinar, logo verá se o portador é um temperamento aquietado ou versátil; se ama a profissão escolhida ou ainda não encontrou a própria vocação; se andou de fábrica em fábrica, como uma abelha, ou permaneceu no mesmo estabelecimento, subindo a escala profissional. Pode ser um padrão de honra. Pode ser uma advertência”.
Esse texto lapidar do ex-ministro do Trabalho Alexandre Marcondes Filho, analisando com profundidade deveras psicológica a natureza do trabalhador brasileiro, era carregado no bolso por todo mundo. Ou quase. Só vagabundo ou rico não andava com a carteira do Ministério do Trabalho e Previdência Social. Logo que tive a minha assinada pela primeira vez, realizei um sonho: comprar um terno n´A Impecável Maré Mansa.
A loja ficava na Marechal Floriano e eu trabalhava perto, na Leandro Martins, uma quase travessa entre Acre e Camerino. Meu único terno fora adquirido na Casa José Silva e as prestações terminaram um dia desses.
A Ducal oferecia a promoção de um paletó e duas calças, mas não valia a pena. Saía menos em conta e o produto não era tão bom. Dessa vez, eu é que iria pagar. Portanto, fiquei na cola do bonito e barato. Meu coração balançou entre duas lojas quase vizinhas – a outra, se não me engano, era A Insinuante. Mas A Impecável foi mesmo meu sonho de consumo naqueles tempos. Fui convencido disso por um programa de humor da Rádio Globo, “A Turma da Maré Mansa”. Tinha até jingle feito pelo Gonzagão dizendo que bastava “a carteira de trabalho e mais nada”.
Mas levei tempo para adentrar a fabulosa barateira e adquirir o terno da moda, na cor mostarda. Era preciso um ano de carteira assinada. Ganhei de presente o segundo terno, da mesma cor azul do outro, combinando com o uniforme do colégio.
A Impecável não tinha frescura. Nem frescura, nem provador, nem banquinho pra deixar as coisas, nem alfaiate tomando medidas, porra nenhuma. O que havia era um vendedor puto da vida porque tinha que ficar de olho no bando de sujeitos pelados, na maioria nordestinos, alguns até usando chapéu de boiadeiro ou de cangaceiro,
e sempre tinha um cearense filho da puta botando apelido de manja-rôla no coitado do vendedor.
Os clientes trocavam de roupa todos juntos numa sala grande, tipo fila de exame médico de quartel. Coisa desagradável, neguinho achando que o outro estava olhando de esguelha seu pinto, o outro achando a mesma coisa, ambos sem saber se o suposto manjamento era questão de veadagem ou de antropometria – se o colega tinha pau pequeno, pau grande etc.
As carteiras de trabalho ficavam empilhadas numa esteira, no meio da sala. Tão ruim a experiência que, trocou de roupa, era pegar a azulzinha e se mandar dali. Foi o que fiz: terminei a prova do terno, peguei a caderneta azul novinha em folha e fui abrir meu primeiro crediário, todo prosa. Por engano, um dos Severinos, que resolvera não comprar a calça que experimentara, saiu batido levando minha carteira de trabalho.
Que situação! Fiquei um tempão na loja esperando o desgraçado perceber o engano e voltar para devolver (e pegar a dele, que estava comigo). O gerente pediu desculpas e só restava retornar no dia seguinte. Fui de manhãzinha, logo que a loja abriu, e nada. Dei nova passada na hora do almoço e o puto ainda não tinha dado as caras.
No final da tarde, Severino finalmente foi localizado. Em cana. Dormiu no xadrez porque, feliz da vida por ter finalmente arranjado emprego, encheu a cara e fez merda num boteco em Caxias. Quando a polícia chegou e viu que o retrato da caderneta getulista não conferia com os cornos do desordeiro que não queria pagar a conta, recolheu-o aos costumes, “detido para averiguações”.
Só no fim da tarde é que um meganha teve a boa idéia de pegar o telefone do distrito e checar a história com o gerente d´A Impecável, onde minha carteira finalmente havia chegado – e foi preciso mais um dia para isso! Queriam saber se o cara tinha roubado alguém, e o gerente garantiu que foi apenas um engano. Só assim soltaram o Severino, coitado, que faltou justo no primeiro dia do emprego.
O pior foi chegar no Pedro II usando aquele terno mostarda. Eu só não. Uns três ou quatro colegas do turno da noite que também ralavam durante o dia usavam a mesma beca. Adivinha o apelido que deram pra gente?

Leia novamente o título dessa postagem.

terça-feira, 19 de maio de 2009

O DETETIVE EM PRETO E BRANCO DO BAR NATAL


Uma idéia maluca do jornalista e professor de comunicação da UFF Eduardo Varela rendeu ótimos momentos para ele e três amigos, Lauro Faria, Wilson Paraná e eu mesmo. Propôs que escrevêssemos em parceria um romance policial meio burlesco, matou a cobra e mostrou o pau (no bom sentido). Trouxe para a mesa do extinto Bar Natal, em Niterói, três ou quatro páginas datilografadas e nos impôs que continuássemos a trama.
Por falta do que fazer ou para exercitar a criatividade, todos botamos a mão na massa, só que apenas ele, Varela, conservou parte dos originais, que, para o bem da literatura, foram parar não sei onde. Te cuida, Garcia-Roza!
A história dessa empreitada insana foi contada pelo autor da idéia, um dia desses, em sua crônica semanal publicada no jornal “A Tribuna”.

“O saudoso Bar Natal - que ficava onde é hoje o Plaza Shopping, em Niterói, exatamente no vitrinão da Tok-Stok – tinha histórias e mais histórias. Tomei parte em algumas que posso contar, outras devem morar apenas na memória de quem que as viveu. Saudade! Uma noite, decidimos escrever um livro a oito mãos, o Paraná, o Lauro Faria, o Zé Sérgio e eu. Seria um pastiche das histórias policiais americanas, algo entre (o texto de) Shell Scott e (a interpretação de) Bela Lugosi.
O Lauro deu o tema: “Um detetive em preto e branco”, que acompanhava certo clima noir do final dos setenta, e escreveu a primeira parte (um primor!; produzíamos cinco ou seis laudas cada um e passávamos a bola para o outro, não lembro a ordem).
Depois que o mistério foi apresentado e a obra já ia pelas quarenta folhas, notamos que Lauro dava exagerada atenção a certa personagem, uma mulher de olhos azuis, deslumbrante, que fumava de piteira e arrebatava os homens que dela se aproximavam (seu criador, principalmente). E tal ia o chamego com a criatura que ele se desviava da história perdendo intermináveis parágrafos em sua adoração; o Lauro sempre gostara de mulheres fatais, falsas, distantes, mas que acabavam em tórrido agarramento com os heróis.
Frequentador dos grandes poeiras da cidade, nosso autor tinha um coração pavimentado de utopias românticas, coisa de cinema americano, e não perderia a chance de curtir um fetiche daqueles. Lembremos que o tema era dele. Paraná e Zé Sérgio (este comandaria um próximo cometimento coletivo: “Macumba em Moscou”) mantinham-se coerentes com o andamento do texto e faziam o possível para que a trama chegasse a termo, tarefa complicada para nossas individualidades tão acesas na época como estrelas de Hollyood.
Eu, mesmo, criei uma negra – inglesa – que não esqueço: Santha Havlock, cuja função era aproximar-se do detetive e, quem sabe, manter com ele um caso de amor. Mas seu destino, como o de todas as personagens da história, ficaria a cargo de quem continuasse a escrever, não havia muito controle sobre o rumo das coisas. Sei que o Lauro, com certeza temendo um embate da negra com a loura da piteira, assassinou Santha Havlock com um tiro certeiro, numa noite gelada de Chelsea ou West Village.
Fiquei puto, mas não disse nada: além de bom cabrito, tinha sido criado em São Gonçalo, daí o silêncio. Enquanto corria a barca, situações e personagens eram criados no mais puro estilo bolsilivro. Líamos o material no bar e comentávamos sobre a linha a seguir, embora não houvesse maior coerência com a arquitetura da obra; tudo dependia da inspiração, dos últimos romances lidos ou vividos, dos filmes, da cerveja... Também não tínhamos intenção de publicar nada, o prazer era rir e desenvolver a trama.
Semanas depois, pelo rodar da panela, os originais e a musa do Lauro deram em minhas mãos: na parte que interessava, a loura ia se encontrar com o detetive num cais de Nova Iorque e dar informações importantes sobre o crime da negra.
Era a minha vez!
Fui para casa e na mesma noite tirei a Remington 42, velha de guerra que guardara do Globo quando por lá chegaram os primeiros computadores, e criei a atmosfera:
“Madrugada; o casal estava no carro dela, o cais cheio de ratos e cachorros vadios que trepavam furiosamente; o lugar era envolto por uma bruma que cheirava a lama e maresia; a piteira dela soltava uma fumaça azul, desenhando arabescos contra a paisagem cinzenta dos edifícios... Foi quando rolou o clima. O detetive deu-lhe um beijo e ela disse – em inglês, of course – no meio de acre baforada:
– Posso surpreender os homens, sabia?
O policial não disse nada e foi pra dentro, como se o cais fosse o velho mirante da Boa Viagem ou o tronco de uma conhecida jaboticabeira atrás da igrejinha do Porto da Pedra. A temperatura esquentou rapidamente e ele tornou-se mais corajoso, explorando o corpo da mulher logo abaixo do pescoço.
– Pare em nome da lei, implorava ela.
Mas o private-eye não ouvia nada; aventurava-se por jurisdições que não eram as suas. A certa altura, a mulher travou suas mãos desbravadoras e pediu um cigarro, daqueles que para acender se risca o fósforo no sapato; ele obedeceu, mas logo continuou a exploração, inebriado pelo Eau d’Hadrien que ela usava e pelas sensuais tentativas em detê-lo. Por fim, suas mãos chegaram à parte proibida da história. A Estátua da Liberdade, que dali se via, animava-o no rumo das grandes invasões. Mas algo estranho acontece (minha desforra ia melhor no presente do indicativo): a mão do policial não encontra o que esperava, mas sim um volume grosso, rígido, que mais parecia um bastão de golfe torneado na melhor sequóia das matas de Yellowstone.
– Deus! O que é isto?, exclamou aterrado o detetive.
– Eu não falei que poderia surpreendê-lo, homem da lei?
O policial deu um grito, abriu a porta e desapareceu por entre os armazéns do velho e malcheiroso cais de Manhattan
”.
Eu vingava Santha Havlock, sacaneava o Lauro e mandava o crime perfeito, aquele em que, para a história, continuar vivo era o mesmo que ter morrido.
Eduardo A. Varela".

quarta-feira, 6 de maio de 2009

SEU PISTOLÃO SUBIU NO TELHADO


Minha entrada no Jornal do Brasil foi tragicômica. Depois de passar no vestibular do Cesgranrio, no início de 1973, precisava de emprego urgente. Minha mãe, ex-aeromoça da Cruzeiro do Sul, era servidora do Ministério do Trabalho e complementava o orçamento costurando numa Singer antigona. Aprendera o novo ofício poucos anos antes, por absoluta necessidade, copiando os moldes da Burda, revista de moda alemã. Tinha tanto jeito pra coisa que nosso apêzinho no Posto 6 virou miniateliê com muitas freguesas ricas, uma delas artista plástica e ex-embaixatriz.
Maria Martins, quase octogenária, soube que o filho da costureira, um rapaz magrinho de óculos, naquele mesmo ano ingressara na faculdade de Comunicação da UFF e teria que largar o emprego no Instituto Verificador de Circulação, onde eu viajava pelo país levantando a vendagem de jornais e revistas, por causa do horário das aulas.
Não teve dúvidas: escreveu uma bonita carta de apresentação para sua amiga Maurina Dunshee de Abranches, a Condessa Pereira Carneiro, e me entregou para que eu tentasse uma vaga no Jornal do Brasil. Muito tímido na época – criado no subúrbio, a Zona Sul me assustava um pouco –, fui à Rio Branco levar a tal carta. Aí soube que o endereço novo era o nº 500 da Avenida Brasil, para onde a redação e a diretoria já haviam mudado.
Passou o fim de semana e, não lembro o porquê, fiquei mais alguns dias com aquele passaporte para a glória e o sucesso profissional, via pistolão, em minhas mãos. Um dia, criei coragem e peguei o ônibus Olaria-Copacabana e desci em frente ao querido elefante branco. Peguei o elevador e fui ao nono andar, entreguei a carta à secretária da diretoria, simpaticíssima, mãe da Beatriz Bonfim, de quem eu viria a ser colega. Polidamente, ela me contou uma história triste, no início achei até que estava me enrolando:
– A Condessa não está agora, mas vou entregar a carta mais tarde, quando for possível.
Sem que eu perguntasse – estava mudo e envergonhado –, ela disse mais:
– Não se preocupe que eu entrego a carta. É que a Condessa foi ao enterro de uma amiga dela. Posso abrir o envelope?
Balbuciei que sim.
Quando ela começou a leitura, me encarou pela primeira vez. E à medida que lia, com muita atenção, voltava ao olho-no-olho, com muito desconforto.
Foi então que eu soube da tragédia: o enterro era do meu (aliás, minha) pistolão.
Voltei para casa arrasado. Tem coisas que só aconteciam comigo e com o Botafogo. Os dias se passaram e nada de receber algum telegrama do Jornal do Brasil me chamando para alguma entrevista, sei lá... Teriam, quem sabe, tentado me encontrar pelo telefone, se tivéssemos um.
Ou seja, fudeu!
Minha irmã mais velha e despachada resolveu com um telefonema. Ligou para o JB.
– Jornal do Brasil, boa tarde!
O pobre do telefonista teve que ouvir a história maluca e ficou sem saber o que fazer. Se ligava para a diretoria, para o departamento pessoal, melhor seria a redação. E jogou para o número da Internacional, onde quem atendeu foi a então subeditora Clecy Ribeiro. O editor era o paraibano Humberto Vasconcelos.
A ótima falante e melhor ainda ouvinte Clecy foi direto ao ponto.
– Tenho uma vaga aqui, se ele puder trabalhar a partir das cinco da tarde até dez, onze da noite. Não é vaga de jornalista, mas alguns começaram assim.
Topado. Fui no dia seguinte e aprendi rapidamente o novo ofício: eu passava no telex de 20 em 20 minutos e tirava das máquinas da AP, UPI, ANSA, France Presse, DPA e Reuters os telegramas enviados por essas agências de notícias internacionais. Levava para a mesa da Clecy ou do Humberto e passava 20 minutos lendo tudo quanto é jornal e os próprios telegramas que não haviam sido aproveitados. Tenho lembrado muito daqueles tempos quando vejo futebol pela TV e à beira do gramado sempre identifico o velho Fritz, teletipista daquela época, hoje funcionário da Associação de Cronistas Esportivos.
Passaram uns meses e abriram vagas para o novo cursinho de jornalismo, a verdadeira porta de entrada do JB, sem pistolão. O curso era dado pelo editor de Pesquisa, Roberto Quintaes. Fiz a prova de conhecimentos gerais, com 100 perguntas, e esqueci aquela porra.
Eu que já estava bem menos tímido, e começara até a fazer umas notinhas de colunão. Num belo (e põe belo aí) início de noite, entra na sala da Internacional o diagramador Fichel Davit Chargel, com seu bigodão ainda preto. Davi tivera acesso às provas, já corrigidas, e esculhambou o nível da garotada. Me encolhi na cadeira.
– Mas os 30 que passaram (éramos, sei lá, uns 300 candidatos ou mais) se saíram bem. O primeiro colocado acertou 95 das 100. O nome da figura é... ué??? Não é você, ô cara?!
Valeu por ter soprado as respostas, embaixatriz!

quinta-feira, 2 de abril de 2009

NA CAATINGA TAMBÉM NÃO TINHA HERÓI


Robin Hood não tinha nada de bandido romântico, afirmam agora os pesquisadores ingleses. E eu achava que o arqueiro verde era só lenda, mas parece que existiu mesmo. Nos trópicos, quem chegou perto da imagem de fora-da-lei bonzinho foi Lampião. Porém, desde criança, ouvi horrores dele. Nasci numa pequena cidade sergipana, Propriá, à beira do São Francisco, perto da foz. Vim logo para o “Sul” e, por isso, minha ligação com a terra natal é quase nenhuma. Mas soube que Propriá só não era atacada pelo bando de Lampião porque a filha dele e da Maria Bonita era interna do colégio de freiras local.
Ouvi muitas histórias de cangaceiro e a mais pavorosa teria ocorrido em uma pequena localidade sergipana. Um dos cabras teria se vingado de um coiteiro (pessoa que dava abrigo e comida quando o cangaceiro estava em perigo), suspeito de delação. Cortou a cabeça do homem, da mulher dele e de todos os adultos da casa. Jogou tudo num saco e entregou a uma criança da família, poupada na chacina. Assim me contaram.
Outra história, esta engraçada, teria ocorrido em setembro de 1930. No mesmo dia, teriam acampado em lugares distantes da cidade dois exércitos fortemente armados. O bando de Lampião, que fora visitar a filha no grupo escolar, e a tropa comandada por Juarez Távora, o “Vice-Rei do Norte”, que descia o litoral a caminho do Rio de Janeiro para juntar-se aos gaúchos de Getúlio Vargas na Revolução de 30. Diz-se que os chefes das duas tropas estavam informados, mas fingiram não saber de nada.
A história desses facínoras é contada em detalhes no Memorial da Resistência ao Cangaço (na imagem lá em cima, os cangaceiros estão abaixo dos resistentes), em Mossoró (RN). O conteúdo pinga sangue. Mossoró era cidade importante e foi lá que Lampião sofreu a maior derrota, em 1927. Até então, o cangaceiro se contentava em pilhar vilas sertanejas, cortando línguas e cabeças, liberando o estupro, coisas assim. Inimigos bem armados eram evitados, como os revoltosos da Coluna Prestes.
Um dia, contudo, o olho que restava ao cangaceiro cresceu. Só que Mossoró estava preparada para reagir e a onça bebeu água. Depois de bater em retirada, o caolho confessou a um refém que seu erro fora o de invadir um lugar com mais de duas torres de igreja. Ou seja, atacar uma cidade maior. Quis o destino que o meliante morresse numa cilada em Angico, um lugar bem próximo de Propriá.
E foi então que a crueldade mudou de lado. As cabeças do bando, decepadas, passaram a ser exibidas nas feiras da região, começando pela de Propriá, onde alguém muito ruim teria levado a menina Expedita para ver de perto o trágico fim de seu pai e de sua mãe.
No diacho da radiola que tá lá em riba, um forró arretado de Luiz Gonzaga, o Lua, o Rei do Baião, com o título onomatopaico de Tei Tei no Arraiá. É tiroteio de cangaceiro pra mode vivente nenhum butá defeito.

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

NOTÍCIAS RECENTES (!!!) DO NARIZ

Tive até hoje 28 endereços na vida, e não sou filho de militar. Já morei em pensão barata, casa de subúrbio, apartamento perto de praia e até em internato, o Colégio Diocesano de Uberaba, no Triângulo Mineiro. Guardo poucas lembranças desse endereço – Praça Dom Eduardo, nº 5, na colina do bairro das Mercês. Fiquei lá apenas um ano, o de 1966, mas só tenho boas lembranças do ensino de qualidade (fiz lá o 3º ano ginasial) e do bem organizado campeonato de futebol.
Meu time, um dos piores, era o Sabiá, em homenagem ao puteiro de mesmo nome situado na Rua São Miguel, vizinho do Sagrado. Sagrado era o nome de um dos campos onde a bola rolava, nas tardes de quarta e quinta. Eu era lateral-esquerdo mas sempre caía para o meio da zaga, ou seja, fui escalado numa das posições tradicionalmente reservadas para os cabeças-de-bagre. A bola passava sempre, inclusive por baixo das minhas pernas, mas o adversário nem sempre completava o drible. Sim, eu era um beque rústico.
O Diocesano era rígido com a disciplina. Quem aprontasse durante a semana, teria que passar o sábado e o domingo de castigo – os piores, eu incluído, tínhamos que ficar horas durante a noite cumprindo pena numa das 200 e tantas árvores de uma alameda interna, numa escuridão total. Certa vez, fui punido e tive que marcar ponto na árvore 143. Difícil era não perder a conta.
Quando ficávamos reclusos nos fins de semana, o remédio, durante o dia, era jogar bola, enquanto os outros canalhas passeavam, iam ao Zebuliche, bebiam Coca-Cola na Padaria Zebu, assistiam os filmes em cartaz no Cine Zebu, etc. Enfim, uma temporada inesquecível (!!!).

Uma das lembranças mais agradáveis – para se ter uma pálida idéia da noção de agradável num colégio interno – foi o dia em que um dos nossos colegas rompeu um ligamento, jogando bola. Não podíamos sair do colégio por nada. Um dos irmãos maristas que zelavam pelo nosso confinamento tinha ordens para impedir, no peito e na raça, qualquer tentativa de fuga. E o cara era um grosso! Acho que este era brasileiro e se chamava Brás. Irmão Brás, sei lá.
No entanto, tínhamos uma emergência e era preciso levar o Bolacha ou Papagaio – não lembro do apelido da figura, e muito menos do nome cristão – até o hospital de Uberaba. O grosso da portaria concordou em levar alguns de nós para o caso de o médico perguntar algum detalhe sobre o acidente futebolístico.
Meu colega foi atendido por um ortopedista. Enquanto isso acontecia, apareceu outro médico, mais velho, que devia ter cargo na direção do hospital, para dar uns palpites. Deste não esqueci o nome – era o doutor Álvaro Lopes Cançado, assim mesmo, com cedilha. Quando tudo estava mais ou menos resolvido, o doutor Cançado puxou conversa sobre o jogo e tivemos que nos segurar para não cair na risada quando disse que tinha jogado na seleção brasileira.
Perguntou o time da gente – quase todos eram torcedores do Atlético Mineiro e eu, o único do Rio, botafoguense. Ele riu e disse que tinha jogado nesses dois times. Mais motivos para uma furtiva zombaria de adolescentes. Disse também que seu apelido no futebol era Nariz. E nunca tínhamos ouvido falar de nenhum craque com esse nome.
No dia seguinte, um dos maristas bons de papo – havia muitos, quase todos italianos ou franceses – confirmou a história.
Lembrando dessa história, acessei o Google em busca do homem e foi então que tive duas surpresas, uma boa e outra ruim. A boa é que foi Nariz quem criou o primeiro departamento médico de um clube no país, justamente no Botafogo, cujas cor e ausência de cor defendeu, já no profissionalismo, sob um contrato simbólico pelo qual o Glorioso pagava ao doutor um cruzeiro por ano. A má notícia: Nariz suicidou-se em 19 de setembro de 1984 na velha Uberaba, o antigo Sertão da Farinha Podre.
Na foto acima, Nariz está de pé, com uma touca na cabeça. É o segundo da direita para a esquerda

EU E O ZÉ, O ZÉ E EU - O RETORNO

Como tem Zé na Paraíba. Só no meu corpo habitam dois, o Zé que fui e o Zé que sou. Não sei se haverá um terceiro ou um quarto Zé no futuro. Por enquanto, somos dois apenas. Ou seriam três, contando com o Zé da infância?
Não, este não, este tem um pouco dos dois. O Zé da Abolição era apenas um guri vindo de São Paulo. Tinha sotaque nordestino por influência familiar (viveu pouquíssimo tempo em Sergipe, o estado natal) e, em razão disso, ganhou o indefectível apelido de Pau de Arara. Todo nordestino era Pau de Arara, viesse na carroceria do caminhão de gente ou numa poltrona da Real Aerovias – meu caso.
CARNAVAL: o menino aprendeu a gostar de carnaval na ladeirinha onde morava, a Cantilda Maciel, e os dois Zés seguiram no passo. O Zé porralouca gostava de ir à Presidente Vargas, à Rio Branco, para ver os blocos e preferia disparado os Boêmios do Irajá. Na abalizada opinião do Zé que fui um dia, o Cacique de Ramos e o Bafo da Onça não passavam de endereços do lumpen proletariado.

ELEIÇÕES: mudei muito e era sobre isso que falava ontem. Sobre as diferenças e convergências entre o Zé que fui (e que certamente votaria na Heloísa Helena nas próximas eleições presidenciais) e o Zé que sou (que deve votar em Serra mas vê Dilma como um mal menor diante de Aécio Neves), são tantas como as estrelas do céu.
FUTEBOL: ambos torcemos pelo Botafogo. Fomos, por breve período, corintianos, juventinos e vascaínos. O Corinthians e o time de camisa vinho da Rua Javari dividiram as preferências na rápida temporada paulistana. Chegando ao Rio, fomos vascaínos por influência do avô, mas isso não durou seis meses. Garrincha, Didi, Quarentinha, Amarildo e Zagalo, e também o Nilton Santos defendendo com classe e subindo pela esquerda, foram os responsáveis pela mudança. Não consideramos virada de casaca. Aos 8 anos de idade, podemos tudo.

RELIGIÃO: ambos somos contra. Religião, para os dois Zés, é meio coisa de psicopata. Tá bom, tá bom, a gente gosta dos espíritas (resgates culturais), dos budistas (não incomodam) e dos adventistas do sétimo dia (porque fabricam o suco de uva SuperBom e o molho a bolonhesa vegetariano Soy Good). Se bem que a política era algo quase religioso para o homem do passado...
PATRIOTISMO: ambos nos consideramos patriotas, mas não velhacos. A diferença é que o Zé de ontem era nacionalista até dizer chega. Quem disse “chega!” foi o Zé atual.


INTERNACIONAL: o Zé de ontem gostava do Fidel e, com certeza, gostaria também do Hugo Chávez, que o Zé de hoje acha uma figura deletéria, irresponsável, tirânica e protofascista. O Zé que fui não morria de amores pela União Soviética, mas quase teve um troço quando caiu o Muro. O Zé que sou sequer guardaria uma pedra de lembrança.

JAZZ: eu gostava e continuo gostando de Louis Armstrong, Charlie Parker, Dave Brubeck, John Coltrane, Sarah Vaughan, Billy Eckstine e Duke Ellington. O Zé de ontem jamais perdoou Miles Davis pela fusão. O de hoje acha que foi só uma perda de tempo.
BOSSA NOVA E JOVEM GUARDA: O Zé das cavernas odiava a turma do lamê e sempre preferiu a Bossa Nova. O ciberZé continua adorando a Bossa Nova, mas acha engraçado, numa festa familiar, de porre, fingir que é brega e que gosta do Roberto Carlos.
SAMBA E CHORO: Os dois sempre gostamos das duas coisas. Se bem que choro demais enche o saco. O Zé de hoje não é muito chegado a sambistas que rimam com alcaçuz, ou seja, ele não gosta nem do Arlindo Cruz nem do Moacyr Luz. Um empagodou geral e o outro aparece em tudo quanto é matéria que o Globo faz sobre botequim. Vem cá, não tem mais ninguém para entrevistar não, rapaziada? Aliás, falando em aparecer demais, o Zé de hoje não aguenta mais ouvir falar em Zeca Pagodinho.

TELEVISÃO: o Zé que fui também desliga, sobretudo quando aparecem Ana Maria Braga, Faustão, Hebe, Pânico, Xuxa, Galvão Bueno, Renato Aragão etc.

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

EU E O ZÉ, O ZÉ E EU

Mudei muito. O sujeito que eu conheci nos idos de 1968, quando foi apresentado à política estudantil no Pedro II, ou em 1973, quando entrou na UFF, ou ainda em 1989, quando lulou pela primeira vez, pois bem, aquele carinha magrelo de óculos ... esse aí embaixo. A foto foi tirada pela polícia política do governo peruano, e permitiu que o Zé fosse à Cordilheira do Condor, cobrir para o JB uma guerra de araque (qualquer dia falo sobre isso) entre o Peru e o Equador. Detalhe: na hora de confeccionar o documento, o soldado não colocou o prenome do Zé, que é José, como se sabe.

... voltando à vaca fria, aquele cara tímido e metido a radical ao mesmo tempo, que fumava duas carteiras de Hollywood (depois Free, depois Carlton) por dia, que pichava muros no Centro do Rio e panfletava nas barcas às seis da manhã, aquele sujeito que levava esporros do Gazzaneo por ser “porralouca” (me chamava disso o tempo inteiro, hoje só me chama de “ô maluco!”), que preferia o MEP ao Partidão, que em 1982 escolheu o Brizola em vez do Miro, e em 1989 lulou para Presidente da República, aquele cara não vai me perdoar nunca, mas mudei de opinião sobre quase tudo o que pensava.
E mesmo mudando de opinião, sei que continuo aquele mesmo cara, não é estranho? Esse negócio de blog deve provocar essas confusões, é uma droga auto-referente. Mas, às vezes, não dá para escapar de falar de si mesmo por uma razão simples. A gente se sente canastrão por dizer coisas que não diria alguns anos antes, algumas décadas atrás.
E, por isso, a gente tem que se explicar, ou melhor, tem que explicar a si (mim) mesmo que o sacana e o traíra não sou eu. É outro.
Peraí, como é o outro? O outro também tem o direito de mudar de opinião, né mesmo?
Sinto-me dizendo àquele sujeito de antes:
“Ô Zé Sergio! A possibilidade de reeleição indefinida do Hugo Chávez é um escárnio. Ô Zé de 1968, você que amava mais o Fidel do que os Beatles e os Rolling Stones, esse cara é um ditador, e não me venha com aquela história de ditadura do proletariado que era também uma merda, mas era uma coisa muito diferente do que essa tal de revolução bolivariana”.
“Cala a boca, burguesão escroto! Eu bem que sabia como ia terminar essa merda de blog que tu inventou, revisionista de merda! O Chávez está fazendo o que é certo, tem mais é que enfiar a revolução bolivariana goela abaixo dos ianques”.
“Revolução bolivariana? Hahaha!”.
Putz, que cara chato! Lembro dele em 1973, recém-chegado à UFF. Logo de cara, puseram o nome do cara numa chapa para concorrer à direção do DCE. Uma chapa de esquerda, diga-se, mas que queria travar uma luta acadêmica e tinha como objetivo primeiro o diploma de jornalista. O resto viria depois. Era o pessoal da PEG (que lutava contra a política educacional do governo, numa primeira etapa da luta). Logo na primeira reunião com os membros da outra chapa, mudou de lado porque os outros eram mais “de esquerda”, falavam em construção da unidade. O sujeito que eu era em 1973, nesse ponto, estava certo, acredito nisso até hoje.
A propósito, hoje eu sou esse cara aí embaixo, o folião fantasiado de membro da ala terrorista do Islã português no Cordão do Boitatá, onde estarei domingo que vem, sem falta.

Lembro de outra história hilária daquele cara que eu fui. No tempo de um certo Movimento de Emancipação do Proletariado (caralho!!!), eu vivia de um lado pro outro com o cartão da combativa advogada Eny Raimundo Moreira, que eu nem conhecia pessoalmente. Só sabia que, se fosse preso, deveria recorrer a ela. Um dia, no JB, o velho Gazza, calabrês de pai e mãe, nascido em Alagoas, Partidão doente, palmeirense dos quatro costados, me perguntou o que eu faria se fosse em cana. Tirei o cartão do bolso. Outro esporro:
“Porra, vocês porraloucas são burros mesmo! Essa advogada do MEP é boa, mas não tem a experiência do Jansen, do Marcelo, do Modesto. Tem que procurar o Jansen, porra!”.
Bom, passei a andar com os dois cartões – com o da dra. Eny e com o do dr. Humberto Jansen. Se, por acaso, eu fosse preso sob suspeita de ter ligações com o MEP, opa, pedia para ligar pra dra. Eny. Se me metesse em algum outro tipo de enrascada, sei lá, durante uma passeata, procurava o dr. Jansen. Assim eu enganaria os canas, que iam pensar que eu era do “pessoal da Reforma”. O povo do Partidão detestava quando era chamado assim.
Já ouço o Zé magrelo:
“Esse negócio de parar de fumar deve ter contribuído também para seu avacalhamento, sua deterioração moral. Volta a fumar, burguês filho de uma puta!”.
Ele não sabe, isso sim, a merda que fez começando a fumar. A culpa foi daquele infeliz, que chegou a usar até cabelo black power, pode isso? Vai ser metido assim na puta que o pariu! Sim, me deixou essa herança da qual me livrei há quase dois meses e, por enquanto, sem sentir saudade alguma.
Putz! Acho que vou votar no Serra. Mas até aí, nada demais. Serra é mais de esquerda que o Lula, na opinião de quem sou hoje. O Lula é aquele sujeito que vive berrando sempre que ligo a TV, como se estivesse me dando uma ordem qualquer. Vai dar ordens lá no sindicato, porra! Que história ridícula aquela de que cortaria “até o batom da Dilma”, mas não as obras do PAC.
Ô demagogia barata!
“Tu queria o quê, burguesão de merda? Vai ver que tu é Serra hoje porque no telefone sempre se enganam com o nosso nome. Hoje mesmo, ligando pro plano de saúde, quando tu disse seu nome, a mulher perguntou “José Serra?”.
Sujeito horrível. Cala a boca, animal! Pode ficar tranquilo que, se não for o Serra, pode ser que eu também goste de ter a Dilma como presidente.
Numa coisa, nós dois, o Zé de ontem e o de hoje, concordamos: por motivos diferentes, não queremos nem pensar em ver na Presidência o pegador de misses, o amigo do Garnero e do Accioly, o neto do Tancredo. É o mais moço dos três pretendentes e o mais velho de todos. Meu Deus, já imaginaram o PMDB raposando todos os galinheiros?
Fora Aécio Neves, no resto discordamos em quase tudo. Mas acho que, bem lá no fundo, nós nos entendemos, eu e o Zé, o Zé e eu.

domingo, 18 de janeiro de 2009

CASAMENTO FELIZ CHEGA AO FIM APÓS 40 ANOS

Parei com o cigarro há 10 dias e parece que já ouço alguém zombando: “Pouco tempo, não vem tirar onda!”. Tiro onda, sim, até porque antes só tentei parar duas ou três vezes e sempre tinha a certeza absoluta de que voltaria às tragadas. Desta vez, é diferente. Não vou escrever livro de auto-ajuda, fiquem tranqüilos, e nem serei ex-fumante chato, mas já quero compartilhar algumas observações sobre a deliciosa experiência que estou vivendo.
Sabe casamento quando acaba? Melhor dizendo: quando acaba porque precisava acabar? Foi o que houve entre nós, entre o cigarro e eu. Um casamento de 40 anos cravados, união estável, duradoura, eu diria até um casamento feliz! Fora os anos de namoro, os momentos ingênuos que lembro, cada um deles, como costuma acontecer nas melhores relações, antes do vamovê.
Uma tardezinha em 1960 ou 1961, eu moleque de oito, nove anos, indo ao bar do Meira e do Meireles, dois portugueses, sócios de um buteco na Cantilda Maciel, bairro da Abolição, para comprar o Caporal Amarelinho do mais querido dos avôs que tive – cujo sangue não tenho nas veias, uma vez que era padrasto do meu padrasto, dá para entender que figuraça deveria ser para eu gostar tanto dele, há tantos anos falecido? O caporal era azul, vermelho e branco (demorei para entender o porquê do “amarelinho”) e anos depois associei a Napoleão Bonaparte, quando li que fora o mais jovem dos caporais do exército francês. Outra figura histórica do mesmo avô: o Lincoln. Acho que, não achando mais sua marca favorita, vovô mudou-se para esta nova, da Souza Cruz. Foi o cigarro que o acompanhou até o último endereço, em Inhaúma. Mas, vejam, não foi o Lincoln que o matou, e sim a diabete. Doença pavorosa antes de tantos medicamentos novos e tantos produtos bons. A dele provocou gangrena.
Não reparem muito, mas ando pensando esquisito e desconfio que estou escrevendo mal. O cigarro sempre ficava aqui ao lado do computador. Ficava também ao lado da privada. Mas já estou cagando sem ele. As palavras me faltam. Eu ia pedir desculpas pelo gerúndio de mau gosto que acabei de usar, queria usar outro termo, porém esqueci qual era. Vou lembrar, sem a ajuda do cigarro. O casamento acabou mesmo. Não vou na antiga casa pedir que me lave a roupa, coisas assim, estão me entendendo?
Foi em 1966 que o namoro começou de verdade. Na quadra de basquete do Colégio Diocesano de Uberaba. Um dos colegas me ofereceu a binga (no Rio, guimba) de um Luiz XV. Que coincidência! Meu avô era bonapartista, eu comecei monarquista. Foi, é claro, um horror. Passei mal, cuspi fora, os outros riam do guri. Embora tivessem a mesma idade, eram homens, eu só um menino bobo que nem fumar sabia. Nos dias seguintes, me ofereciam, risos idiotas, e eu recusava, para não passar mais por aquilo, mas entendi que era um ritual de passagem. E entendia cada vez mais vendo os adultos, os irmãos maristas do internato, fumando cigarros e, pelo menos em um caso, até charuto. Os adultos fumavam. As crianças não fumavam.
Uma tarde daquelas, saindo pelas ruas de Uberaba, num sábado de folga, comprei o primeiro maço, evidentemente de Luiz XV. Mais para mostrar aos outros do que para fumar. Eu puxava a brasa, sem muito interesse de ir fundo, e jogava a fumaça para fora, e não sentia mal estar. Descobriram que eu não tragava. Porra, assim eu nunca seria homem de verdade, seria mulherzinha, florzinha, um fresco. Aí tive que tragar e disfarçar o quanto aquilo me batia mal. Quando convencia os outros, dava um jeito de apagar e enterrar o cigarro para ninguém ver que eu não chegara até o fim.
A maior sacanagem que me fizeram foi terem descoberto que aquele maço de Luiz XV durou até o fim do segundo semestre. Ainda bem que não voltei ao internato no ano seguinte. Já havia me tornado um garoto de Copacabana, frequentador do Posto Seis. Uma saída de aula, todos indo para um bar a fim de Coca-Cola, um dos colegas pediu ao caixa com a maior naturalidade: “Me dá um Minister, varejo”. “Só tem Continental e Hollywood no varejo”. O cara fez cara de nojo. Só fumava cigarro bom. Eu tinha algum dinheiro e fiz a grande bobagem de comprar um maço inteiro de Minister.
Lembram dele? Muita fama, mas tornou-se uma bela porcaria com o tempo. O filtro desgrudava. Teve gente reclamando disso, acho que até na Justiça.
Aquele maço de Minister durou semanas. Eu gostava de levá-lo à praia e deixar, displicentemente, sobre minha toalha, à vista das garotas, de quem passasse. Saberiam que naquele pedaço de areia havia um homem. Claro que me roubaram. E foi aí que me emputeci e, com o salário do primeiro emprego, tirei a merreca necessária para um novo maço. Não de Minister, que era caro. De Continental sem filtro.
Um dia descobri que havia tragado sem problemas quase um cigarro inteiro. O maço durava uma semana, caiu para quatro, três, dois dias.
Além de tudo, em 1968 a gente descobria outras coisas novas também. Continental sem filtro podia ser cigarro de macho, mas era forte demais. Optei pelo Hollywood. Apesar do nome americano, era vermelho como os nossos ideais, porra!
E assim transcorreu, entre 1968 e 2008, um casamento inicialmente feliz. Nos primeiros dez ou vinte anos, melhor ainda. O cigarro era o grande companheiro da timidez, a timidez ia embora, a gente fumava muito e respirava bem, que beleza! E os filmes mostravam poses que podíamos fazer com o cigarro. Humphrey Bogart segurava o cigarro melhor do que ninguém, acho que entre os dedos médio e anular, com a mão em concha. Ou foi outro artista de cinema que fumava assim?
Cigarros, mulheres lindas, praias paradisíacas, cowboys a cavalo, a morte do homem do Marlboro, xiii, as coisas estavam mudando, mas vício é vício, não largo por nada, não me faz mal, não me faz mal, não me faz mal. A cerveja e o cigarro, o cafezinho e o cigarro, o uísque antes e o cigarro depois, o cigarrinho para discutir relação, o cigarrinho na porta do trabalho para comentar a demissão do amigo, o cigarro ajudando a pensar, a escrever, a dormir, a acordar, a fazer a digestão, a cagar.
Então passei dos 50 e, pela primeira vez, tive vontade de parar. Parei alguns dias, na primeira experiência. Houve mais duas ou três e em todas elas eu tinha a certeza de que voltaria a fumar. As noites estavam ficando piores, o ar me faltando. Os dias eram ruins, sem vontade para nada, qualquer exercício físico me derrubava.
Na virada do ano, resolvi levar a sério a academia. Comprei um mp3, coloquei exatas 598 músicas, de Mozart a Ray Charles, de Monarco a Gardel. Um dia desses, em vez dos 30 ou 40 minutos de praxe, fiquei 1,20m na esteira, agora já dá para ficar esse tempo todo, pois não ouço mais a porcaria do som ambiente da academia, aquele bate-estaca nojento. A bicicleta já está com os pneus cheios. Já tomei cerveja e passei no teste. Já conversei uma hora com um amigo fumante, o cigarro dele aceso, e pouco olhei para o cinzeiro. Mas também já quase entrei em crise. Aí peguei a bicicleta e saí por aí.
Fim de casamento é assim mesmo. O lado bom? Muitos. Nunca me senti tão dono de minha vida, respirando tão bem, com tanta disposição. Sei, sei, são apenas alguns dias, mas desta vez tenho a certeza de que é para sempre. Um amigo acaba de me enviar um email cheio de boas recomendações que vou seguir.
Cigarro, teu fim chegou! Vai pela sombra.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

1965, OU CADA UM TEM O AMARCORD QUE MERECE

A ditadura ainda não tinha cara de ditadura no meu tempo de rato da Biblioteca Regional de Copacabana, que ficava no mesmo prédio do curso de inglês do IBEU. Eu adorava a pequena sala onde fui apresentado a muita gente boa, como Aníbal Machado (meu contista favorito), Érico Veríssimo (acho que sei até hoje detalhes sobre cada personagem da trilogia "O Tempo e o Vento"), Dostoievski (meu favorito disparado, li tudo), o inglês Graham Greene e os americanos Scott Fitzgerald e Hemingway. As bibliotecárias gostavam de mim, eu não atrasava a entrega, não emporcalhava o livro... Passei batido pelos franceses, alemães e italianos.
Fiquei meio esnobe na época. Parte, culpa do mergulho na obra do velho Fédor (ou Fiódor, depende, acho que preferiam assim para não lembrar da palavra fedor, mas nas traduções que li ele era Fédor), que me deprimiu bastante e contribuiu para que eu virasse gente. Parte, culpa dos loucos anos 20, da Era do Jazz. Fitzgerald também me jogou lá embaixo, com aquele mundinho besta, sem sentido, sem esperanças, embora divertido com tantas festas na Riviera Francesa e aqueles caras todos falando coisas inteligentes, aquelas mulheres malucas, como a Zelda, que certamente dariam para um estudante pobre como eu.
Em 1965, como no samba de Paulinho da Viola, "tinha eu 14 anos de idade" e ainda não havia "O Pasquim" e nem o programa do Adelson Alves, nas madrugadas da Rádio Globo. O "hebdomadário satírico" (assim era apresentado) abriu minha cabeça para a política e o programa de rádio me fez gostar de samba, quase tanto quanto eu passara a gostar de jazz New Orleans. O rádio tocava um dos sambas do quarto centenário do Rio de Janeiro, gravado por Miltinho com aquele vozeirão meio fanhoso ("Procurei pelo Rio a estátua do Estácio de Sá/ Fui aqui, fui ali, acolá/ E não sei onde está... Cadê a estátua do Estácio de Sá?").
Um dia, voltando à biblioteca, abri exceção para Stefan Zweig, austríaco e judeu. O título "Brasil, país do futuro" me capturou. Na época, achei o máximo. Acho que foi o primeiro brasilianista, mas hoje sou mais cativado pela vida dele, tão bem contada por Alberto Dines, do que pela obra que deixou. É bem verdade que não li mais de três livros de Zweig e não gostei de nenhum.
As primeiras gerações do pós-guerra foram apaixonadas por este país do futuro, mas houve um momento em que a fé se dilacerou. Tentando adaptar (e responder) a pergunta do personagem de Vargas Llosa em "Conversas na Catedral", vou nessa também: E aí? Qual foi o momento exato em que o Brasil se fodeu? Quando perdemos a esperança naquele país do futuro? Foi em 1889, com a Primeira República? Que não foi melhor do que a monarquia do velho e bom Pedro II... Teria sido em 1964? Acho que não. O golpe foi uma merda que deu sentido à vida de muita gente, que passou a acreditar na Revolução com inicial maiúscula. Ou, quem sabe, em 1989 e nos anos seguintes da Era Collor? Acho que está ficando mais quente.
Em 1965, eu morava em Copacabana e ia ao Rian ver as chanchadas da Atlântida. Um dia quebraram o Rian, acho que foi na estréia de "Help", com os Beatles. Não sei se foi em 1965.
Estudei naquele ano no Externato Atlântico, na Raul Pompéia quase esquina com Rainha Elizabeth. Fiz cada ano do ginásio em um lugar diferente. Política em 1965? O diretor do colégio reuniu a garotada no pátio para falar bem do candidato da UDN, Flexa Ribeiro, que tinha como vice um político chamado Danilo Nunes, autor de um livro estranho ("Judas, traidor ou traído?") que só folheei. Muito ruinzinho. O diretor recomendou que fizéssemos a cabeça dos nossos pais a favor do Flexa Ribeiro.
A direita, que quase sempre caminha junta, estava dividida: os partidários mais radicais do golpe queriam Amaral Neto, que "O Pasquim", anos depois, rebatizaria para todo o sempre como "Amoral Nato". Que maravilha aquela eleição! Ganhou o candidato do PTB, Negrão de Lima, um ex-embaixador, um senhor elegante, queimadão de praia (mulato?), que usava chapéu gelot. Não era propriamente um inimigo dos novos donos do poder, mas sua eleição significou uma derrota e tanto para a turma verde-oliva.
Milk shake no Bob´s da Domingues Ferreira, quando havia dinheiro. Sorvete de casquinha do Lopes, no Posto Seis, perto de minha casa (na Francisco Sá) e do cinema Caruso, o melhor do Rio, fora da rede Metro. Na praia, DaMate limão, vendido naqueles tambores e bebido naqueles copinhos cônicos com papel cartão que hoje só se encontra na Laranjada Americana da Travessa do Ouvidor. Acho que ainda encontra. Pelo menos, encontrava, até um dia desses.
Em 1965, em meio às festividades do quarto centenário, me despedi do Rio. A hepatite forçou um reencontro com meu pai em um lugar chamado Iturama, no Triângulo Mineiro. O ano seguinte, 1966, foi todo passado num colégio interno de Uberaba. Nas férias de dezembro de 1966, voltei para a Cidade Maravilhosa, agora com 401 anos.
Em que exato momento, o Brasil (como dizia o pessoal do Pasquim), o Brasil óóó, top-top-top? Será que hoje voltamos a ter esperanças? Eu acho que sim, apesar do governo e da oposição que temos.
Quer me deixar petista roxo? Bota o Artur Virgílio ou o Tasso Jereissati na TV. Ou o Mainardi falando gracinhas. Putz! Acho que o Mainardi faz o jogo do Lula.
Quer que eu vire tucano radical? Bota a base aliada na TV, o Sarney, os mensaleiros e aloprados.
Quer que eu pire? Bota o Lula no vídeo. Me dá nojo quando nosso líder fica saracoteando de um lado pro outro, despejando aquelas frases de efeito agora recheadas de vulgaridades. Eu falo palavrão pra caralho, mas nem eu aguento. Tá na cara que, no caso do Lula, é coisa de marqueteiro. Não tem espontaneidade alguma. Isso deve estar fazendo algum efeito bom de marketing. Em mim, é que não.
Mas há ocasiões em que o ex-quase-sucessor do Cavaleiro da Esperança (eu gostava muito mais do apelido do que do Prestes, que, pensando bem, eu nem gostava tanto) acerta. Como no dia em que foi à Academia, que comemorava o centenário de Machado de Assis e lançava a reforma ortográfica. Só que o assunto daquele dia foi o cassino financeiro. Coitado do Cícero Sandroni, alvejado pelos perdigotos presidenciais. No entanto, Lula falou o que eu queria ouvir naquele dia. Seja como for, tire as crianças da sala quando o presidente abrir a boca na fase atual. Eu sou maior de idade, não tem problema.
Ah, sim! Em 1965, eu não comia ninguém.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

MAMÃE DOLORES NO LARGO DA ABOLIÇÃO

Foi há muito tempo, nos anos 70, quando começaram a surgir cineclubes em todo o Rio de Janeiro. Eu tinha o meu, junto com dois colegas do curso de cinema da UFF, Albertino da Paz Ferreira e Francisco Sergio Magalhães Moreira, o Chico Moreira. Albertino chegou a ser um bom operador de som, mas trocou o cinema pelo Banco do Brasil. Chico foi pesquisador e montador dos documentários Os Anos JK e Jango, ambos dirigidos por Sílvio Tendler.
Nosso cineclube tinha o nome de Ademar Gonzaga – o homem da Cinédia, um dos pioneiros do cinema brasileiro - e ficava no bairro da Abolição, onde eu havia passado a infância. Fizemos acordo com uma escola e lá exibíamos, no tempo do Médici e do Geisel, o que o Cinema Novo e o Neorrealismo produziram de melhor - Gláuber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Rui Guerra, Roberto Rossellini, Vittorio de Sica, Michelangelo Antonioni, Mario Monicelli e outros.
Finda a exibição, começava o debate, porque este era o objetivo inconfesso da maioria dos cineclubes – usar o cinema para provocar, fazer as pessoas pensarem primeiro no filme, depois na própria vida e na política. Não por acaso, muitos cineclubistas eram ligados a partidos clandestinos. Tarefa da organização. Hoje, isso pode soar infantil, mas a gente levava a sério. Nós e o pessoal do Cineclube Glauber Rocha, em Santa Teresa; do Cineclube Grande Otelo, no alto do Salgueiro; do Macunaíma, na ABI; do Cineclube do Leme, semente dos cinemas do grupo Estação.
Flashback. Afinal, falamos em cinema. Para entender a história que vou contar, é preciso voltar mais ainda no tempo, até 1964. Eu era um guri de 12 anos e fiquei sabendo do golpe porque meu avô de criação, seu Correia, mulato, ex-capoeira regenerado, chofer de táxi e brizolista roxo, passou a noite de 31 de março acordado, e eu do lado dele, ouvindo notícias terríveis pela Rádio Mayrink Veiga e torcendo para que as forças leais ao Governo João Goulart derrotassem o inimigo. Só que não havia forças leais. Era tudo traíra!
Na manhã seguinte, jogando bola na ladeira onde morávamos, vi os tanques passando a poucos metros lá de casa, dezenas deles, lá embaixo na Avenida Suburbana. No portão, dona Adelina, minha avó de criação, semi-analfabeta e desbocada, fez o comentário que definiu os 20 anos seguintes:
- Puta que os pariu, vai começar a pouca vergonha!
Na minha idade, o golpe não tinha a menor importância. Em maio de 1964, adoeci. Peguei hepatite e fiquei o resto do semestre em casa lendo Monteiro Lobato e o Tesouro da Juventude, e comendo tudo quanto é tipo de doce. Era este o tratamento na época: encher a criançada de doces. Foi então que ganhei um presentaço da minha mãe, um gravador de rolo cuja marca e modelo nunca esqueci, Transicorder TR 300. Espetáculo!
Mamãe Dolores (Isaura Bruno)e o galã Albertinho Limonta (Amilton Fernandes), na novela exibida em 1964 pela TV Tupi
Quando cansei de mexer no brinquedo sozinho, chamei a molecada inteira da rua para brincar no portão lá de casa e foi aí que alguém teve a idéia da gente fazer uma novela no gravador. Na TV estava passando O Direito de Nascer. Nós faríamos uma imitação, como se fosse para o rádio. E cada amigo tinha um papel.
Sabe o garoto que é dono da bola e escolhe o ataque ou a ponta direita? Pois é. Meu personagem, evidentemente, só podia ser o principal. O do galã. O mais velho da turma, um tal de Condorcet, ficou sendo a mocinha. Por ser o mais parrudo, ninguém duvidaria da masculinidade dele, apesar de certo exagero nos falsetes. Ai se duvidassem!
Evidente que a novela era uma farra. Misturava situações do próprio enredo lacrimejante que estava sendo transmitido pela TV, política – o pouco que sabíamos – e escatologia até não mais poder. Levando em conta o nosso altíssimo nível intelectual, alguns diálogos eram na base do “Querida, vou comer você!”. “Ó meu amor, põe tudo, mas vê se enfia direito essa porra!”. Coisas do Condorcet, que tinha idade e cara de pau para comprar as revistinhas do Carlos Zéfiro e emprestava para o resto da turma.
Mas a gente também misturava política porque a política era muito presente naquele tempo. Nossa ladeirinha era conhecida por ter um dos melhores carnavais do subúrbio, com palanque organizado por um eterno candidato do PTB, seu Zappone. Por causa disso, surgiam diálogos mais elaborados, tais como “Querida, vou comer você e vou botar na bunda do Lacerda!”, “Ó meu amor, me faz um filho e arromba aquele filho da puta da UDN!”. Enfim, a coisa tinha estilo.
Eu tinha que dar pausa na gravação (só eu podia mexer no aparelho, pombas!) porque todo mundo caía na gargalhada. Os coroas da rua não acreditavam quando viam a turminha da Cantilda Maciel, que vivia saindo na porrada com a turminha da Macedo Braga, ali quietinha, todo mundo concentrado, sentado na escada, conversando. Poucos entendiam o que estava se passando ali. Desconfio que ninguém mais no bairro tinha gravador.
Eram dois os principais papéis femininos. O da namorada do galã e o da empregada negra da família cubana ou mexicana, sei lá. Era a Mamãe Dolores. Personagem que foi entregue ao único garoto negro retinto do grupo, o Joel (que gostava de ser chamado de Joe, como os otários americanos dos filmes). Joe PQD, que tinha então uns 14 anos, sonhava com o pára-quedismo, daí a segunda parte do apelido.
Joe morava no Morro do Urubu, para onde volta e meia a turma inteira se mandava e passava tardes inteiras soltando pipa. A avó dele não deixava faltar o refresquinho e o pão com goiabada na hora do lanche.
Só que o Joe era um desastre como ator. Ninguém ria de suas falas, ele esquecia os falsetes, era um desastre. Outra coisa: ele só admitia ser chamado de Mamãe Dolores durante as “gravações”. Fora delas, ameaçava sair na porrada. Mas acabou se conformando com o apelido cruel. Tempos depois, se um de nós o chamasse de Mamãe Dolores, depois reduzido para Mamãe, tudo bem. Mas ai de quem, não sendo da turma, se atrevesse a falar assim...
De volta para o "futuro", ou seja, aos anos 70. Numa noite de domingo fiquei até mais tarde no cineclube. Os outros “sócios” saíram antes por algum motivo. O lugar ficou deserto. Dez e meia, sozinho na Avenida Suburbana, esperando o ônibus para o Castelo (e no Centro pegaria outra condução até Copacabana, onde morava na época), só não tive grande medo porque aquela era a minha área e os índices de violência eram baixíssimos. Medo, naquele tempo, era mais ou menos como hoje em dia: a gente tinha medo, sim, mas da polícia. No caso, da polícia política, mesmo sendo apenas tarefeiro de alguma organização.
Foi então que do nada surgiu um sujeito armado, um negro. Veio direto na minha direção: - Passa a grana senão vai morrer!
Devo ter ficado trêmulo como qualquer pessoa normal, mas a sensação ruim passou logo.
- Mam... Mamãe Dolores??
Mais de dez anos depois da novela. Um abraço forte de velhos camaradas, amigos de infância. E muita tristeza do Joel, que nunca entrou para o corpo de pára-quedistas. Nem do Exército fez parte porque era arrimo de família. Com a morte da avó, e depois do padrasto, que morreu atropelado por um caminhão, ali mesmo na Suburbana, perto do ponto de ônibus, ficou com Joel a incumbência de ajudar a mãe e os irmãos mais novos. E ele nunca deu conta daquele papel direito. Vivia sendo despedido dos empregos de merda que arranjava.
Chorou. Aliás, choramos.
Quando as lágrimas secaram, lembramos os bons tempos. E foi então que fiquei sabendo que o Condorcet havia terminado Medicina. Que o Arnaldo tinha se casado com a Ângela, a menina mais bonitinha da rua. Que o Bebeto morava no Méier com a irmã e o cunhado. E que o Minguinho era funcionário da Abolição Veículos, ali na esquina da Rua Silva Xavier, a rua do Colégio Guarani, que cedia suas instalações para o Cineclube Ademar Gonzaga. Alguém havia morrido de meningite na epidemia que a ditadura proibiu de divulgar. Eu sabia, porque naquele tempo já trabalhava no JB.
Até que caímos na realidade. Eram quase onze da noite e a polícia – agora a preocupação era com a civil ou a militar - poderia aparecer de repente. Juro que pensei na integridade daquele amigo de infância, um camarada que levou uma banana do destino. Comecei a torcer pela chegada rápida do Castelo-Padre Nóbrega. Só então me dei conta do perigo:
- Porra, Mamãe! Guarda essa arma!
Joel também havia esquecido de seu (hoje) ridículo revólver calibre 32, que continuava apontado na minha direção.
- Desculpa, Zé. Nem percebi.
A emoção tinha passado. Agora eu estava puto com a ditadura (sim, a culpa do Joe ter virado assaltante era da ditadura, de quem mais?) e cansado. Cansado e impaciente. Eu queria ver a Abolição pelas costas.
- Mamãe, não é melhor você se mandar?
Até o fim da vida não vou esquecer a resposta daquele pobre sujeito, já na casa dos 30 anos:
- Não, camarada. Vou ficar até chegar teu ônibus. Tá tarde ... tem dado muito assalto aqui...
(Mais um texto já publicado no blog Conexão Irajá)