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terça-feira, 24 de março de 2009
TODO MUNDO TEM UM PÉ NA ÁFRICA
SAUDADES DO BAURU, DO BONDE VERMELHO E DOS TEXTOS MARAVILHOSOS DE MAURO DIAS
Sou pré-baianos e pré-novos baianos. Minha São Paulo ainda é adoniramente a terra da garoa à tardinha, do bife no Brahma, do bauru na esquina, do Gaetaninho de Alcântara Machado nas antologias escolares, do circo do Arrelia e Pimentinha, dos bondes vermelhos da CMTC, das ruas de terra perto do Ibirapuera, do Chico Landi correndo em Interlagos, do album de figurinhas com o Dudu jogando na Ferroviária de Araraquara, da curta temporada com meu pai (então brigado com minha madrasta) no Othon da Praça do Patriarca. Não, não, o Anhanguera, o Borba Gato e o Fernão Dias Paes não jogaram bola de gude comigo.
A cidade que conheci e adoro pude rever, sim, com a revitalização da Estação da Luz, que está uma beleza ...
...em lugares fabulosos como os museus do Futebol, no Pacaembu, e da Língua Portuguesa, ali mesmo na estação da Luz, que recomendo vivamente a todos ...
No Museu da Língua Portuguesa (acima), o povo pisa em poesia, literalmente.
O Museu do Futebol é espantosamente bem dividido no tempo e no espaço. Lá é tudo contextualizado e até quem não gosta do jogo de bola adora o Museu.
Saudades da São Paulo dos sábados musicais da loja Contemporânea, em Santa Ifigênia, com suas rodas de choro comandadas pelo Arnaldinho, pelo Osvaldo Leão e por outros bambas... Peraí, isso não é saudade. A coisa rola até hoje e como é bom acordar cedo no sábado para ver essa turma da antiga tocando o fino! (No jukebox, o choro Escovado, de Ernesto Nazareth, no piano de Carolina Cardoso de Menezes)
Do Bar Leo, não tirei fotos, mas tirei sim e fui clicado durante a tarde-noite na melhor casa de samba de São Paulo, o Ó do Borogodó, com o grupo Inimigos do Batente liderado por meu amigo Fernando Szegeri (de vermelho, abaixo).
TIROTEIO, IMPROVISO, PASSARINHO
Mauro Dias
"Quando o apito da fábrica de tecidos soava, Anescarzinho largava os panos, com os quais tinha aprendido a mexer num curso do Senai, e ia para o samba, com o qual tinha aprendido a mexer por conta própria, inteligência, talento brilhante, cabeça musical de riqueza sem par. Há algum tempo ele já não lidava com pano. Só com samba. Estava com 69 anos e em forma. Morreu no início da semana passada. Foi para o grande fundo de quintal lá de cima, reencontrar Zé Kéti, Cartola, Nélson Cavaquinho: cantou pra subir, subiu pra cantar. A notícia da morte tinha desencontros. Foi o coração, disseram alguns obituários. Foi um tombo, conta Paulinho da Viola. Anescarzinho do Salgueiro estava no ônibus, caiu. Quiseram levá-lo para um hospital, mas ele, numa reação muito típica, desdenhou. O hospital era longe, ele estava bem. Em casa, caiu de novo, no banheiro. Bateu com a cabeça na louça e babau, pediu o chapéu. Foi um dos fundadores da Acadêmicos do Salgueiro, que, como se sabe, resultou da fusão da Depois Eu Digo com a Azul e Branco. Mas isso foi em 1953. Quatro anos antes, Anescarzinho estava na Unidos do Salgueiro e o presidente da escola, Manuel Macaco, pediu-lhe que fizesse um samba. Os compositores estavam em greve. Ele fez Maravilhas do Brasil e brilhou na avenida, embora tenha tirado um quinto lugar. No ano seguinte, compôs Mártires da Independência, com Noel Rosa de Oliveira, seu parceiro (mais Walter Moreira), nos maravilhosos Quilombo dos Palmares, que deu título ao Salgueiro, em 1960, Descobrimento do Brasil e Chica da Silva, o samba-enredo mais bonito de todos os tempos, perguntem a quem entende. Depois, entrou para o conjunto Voz do Morro, vejam só: Anescar, Jair do Cavaquinho, Zé Kéti, Elton Medeiros, Paulinho da Viola, Nélson Sargento, Oscar Bigode e Zé Cruz. Com Paulinho (que depois saiu, dando lugar ao Mauro Bolacha), Elton, Nélson e Jair, criou o Cinco Crioulos. Participou do show Rosa de Ouro, que trouxe a nós a voz da rainha negra Clementina de Jesus, Mãe Quelé. Mas com tanta história e resultante glória, Anescarzinho do Salgueiro era só um neguinho simples, magrinho, simpático, contador de história, sentado aqui com a gente, batendo papo, tomando cervejota. Ele descia a ladeira, pegava dois ônibus e cruzava a Guanabara. Nosso ponto de encontro era um boteco no centro de Niterói, que não existe mais (o boteco, bem sabido). Délcio Carvalho vinha também. Olhava a mesa, o montão de cerveja, dizia assim: "Ih, e aí?" - e entrava na roda, que varava a noite e arrebentava com nossos bolsos. Na madrugada íamos para casa cantando. Para casa: eu morava num apartamento de cômodo único, banheiro embutido, cozinha num armário (é verdade), com meus discos, aparelho de som, violão, livros, máquina de escrever (lembram?), um sofá que virava cama e uma vista magnífica para a Praia de Icaraí, do outro lado da rua. A geladeira tinha a tranca (daquele tipo antigo) quebrada. Só às vezes eu conseguia abri-la. De modo que, para continuar a música, o jeito era ir na cachacinha, fornecida por um primo do Nei Lopes, que a trazia das Gerais. Um dia, Anescarzinho contou que seus passarinhos, e ele tinha muitos, só cantavam quando havia tiroteio no morro. Achei engraçada a história, dessas de folclore, mas Anescarzinho jurou: "É pá, pá, pá, e aí os bichos ti, ti, ti. Vou provar." Apareceu na semana seguinte com uma fita. "Põe pra tocar", disse sério, de um jeito que não era comum. "Samba novo?", perguntei. "Não, a prova dos noves." Pus a fita. Barulhos de casa: torneira abrindo, prato quebrando, criança chorando, cachorro latindo ao longe, alguém passando e perguntando pela janela se vai tudo bem. Meia hora disso. De repente, começa o tiroteio. "Pá, pá, pá" - a mulher mandando recolher as crianças e os passarinhos ti, ti, ti, na maior alegria. Quanto mais tiro, mais pipilos. Espanto só. "Inspiração, cada um sabe de onde vem a sua", pontificou Anescarzinho. Pegou a caixa de fósforos e compôs um samba lindo sobre o assunto. Não gravamos. No dia seguinte, havia esquecido".
(Publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo em 2 de março de 2000)
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