domingo, 3 de maio de 2009

"FRITE OS MESMOS" E MAIS 20 NOVAS E VELHAS HISTÓRIAS


O que não falta aqui no blog é história de redação. Recebi um monte desde que pedi ajuda aos amigos, ex-colegas de jornal. E lembrei de outras, de muitas mesmo. O estoque continua crescendo e aos poucos serão desovados novos causos. Ô raça!
Antes das 20 novas histórias, que estão aí embaixo, vou reproduzir uma muito boa, diretamente do romance “O Ponto da Partida” (Record, 2008), de Fernando Molica. Aconteceu mesmo e o personagem é um gigante da reportagem policial de “O Dia”, que no livro é identificado como João Carniça.
A chegada de novos repórteres, formados pelas faculdades de jornalismo, que costumavam escrever melhor (nem sempre isso é verdade) do que o pessoal da antiga, foi meio humilhante para o João, que ditava para o redator o que havia apurado na rua. Com vocês, o texto do Molica:
“Ficava meio triste quando via aquelas mocinhas bonitas, novinhas, redigindo o próprio texto. E pediu para começar a escrever. Conversou com o redator, tomou algumas lições, faça isso, aquilo, evite os adjetivos, não precisa dar sempre o nome do delegado, do sargento, do soldado, cuidado com as acusações. E, claro, não repita palavras, isso empobrece o texto, cansa o leitor.
O João ouvia, anotava, arrumava aquelas coisas todas na cabeça. Ficou impressionado com aquela história de não repetir palavras: “Ah, é assim, é?”. E num belo dia foi fazer uma matéria sobre o assassinato de um pescador, o cara, sei lá, morava em Niterói, parece que tinha sido esfaqueado pela mulher, um negócio desses. Tinha bebido demais, o de sempre. Como diria o João, consta que – ele também gostava muito do “consta que” – a dona Maria, a mulher do pescador, estava meio puta naquele dia, cansada de trabalhar, de cuidar das crianças, de aturar ordem de marido bêbado.
O sujeito chegou em casa tarde, trocando perna, falando enrolado, com aquela penca de peixe fedorento nas mãos, mandando a mulher ir pra cozinha cuidar do jantar. E, ainda por cima, ameaçando encher a coitada de porrada. Foi o limite. Baixou um caboclo nela, que perdeu a paciência, pegou um facão e, vupt!, abriu um rasgo deste tamanho na barriga do velho homem do mar.
O João Carniça foi lá, enrolou os policiais, conseguiu conversar com a mulher, falou com os filhos, apurou tudo, todos os detalhes. Chegou na redação orgulhoso, nariz meio empinado. Aproveitou que era um plantão, tinha menos gente trabalhando, o seu redator estava de folga. Resolveu escrever o texto. E ia pensando, nada de enfileirar nomes de policiais, nada de adjetivos e, principalmente, nada de repetir palavras. Sentou-se diante da máquina e taquitiquicati, pá-pá-pá, tuc-tuc-tuc, pow, pow. Saiu catando milho, dando porrada na Remington. O cara chegava a suar, coitado, de tão nervoso. Sabia que a redação estava de olho nele, todo mundo dava um jeito de levantar, ir no café, passar por ali para ver como o João se virava naquele trabalho de parto.
Depois de quase duas horas, ele tirou a última lauda da máquina e se levantou. A lata de lixo estava cheia de laudas amassadas, rasgadas. Mas ele, coitado, sorria orgulhoso, aquele sorrisão bonito, que mostrava o canino de ouro.
Foi então ao editor, acho que era o Magalhães, e entregou as duas laudas, dobradinhas. “Taí, chefe, é só dar uma lida e mandar pra oficina”. E o Magalhães, tenho quase certeza que era ele, começou a ler. O lide, o início da matéria, estava até correto, o problema foi na hora em que ele descreveu o momento do crime, a porra da preocupação de não repetir palavras.
Ficou mais ou menos assim: “O pescador entrou na cozinha com os peixes nas mãos e disse para a esposa: – Mulher, frite os mesmos!”.

3 comentários:

Anônimo disse...

Maravilha, camarada Ze Sérgio! Mande mais histórias, mais, mais!

Olga de Mello disse...

Eu conheço o gigante. Um doce de pessoa.

Guigo disse...

Estas histórias poderiam ser o começo de um livro, Zé Sergio. Uma "diliça"!