
Por falta do que fazer ou para exercitar a criatividade, todos botamos a mão na massa, só que apenas ele, Varela, conservou parte dos originais, que, para o bem da literatura, foram parar não sei onde. Te cuida, Garcia-Roza!
A história dessa empreitada insana foi contada pelo autor da idéia, um dia desses, em sua crônica semanal publicada no jornal “A Tribuna”.
A história dessa empreitada insana foi contada pelo autor da idéia, um dia desses, em sua crônica semanal publicada no jornal “A Tribuna”.
“O saudoso Bar Natal - que ficava onde é hoje o Plaza Shopping, em Niterói, exatamente no vitrinão da Tok-Stok – tinha histórias e mais histórias. Tomei parte em algumas que posso contar, outras devem morar apenas na memória de quem que as viveu. Saudade! Uma noite, decidimos escrever um livro a oito mãos, o Paraná, o Lauro Faria, o Zé Sérgio e eu. Seria um pastiche das histórias policiais americanas, algo entre (o texto de) Shell Scott e (a interpretação de) Bela Lugosi.
O Lauro deu o tema: “Um detetive em preto e branco”, que acompanhava certo clima noir do final dos setenta, e escreveu a primeira parte (um primor!; produzíamos cinco ou seis laudas cada um e passávamos a bola para o outro, não lembro a ordem).
Depois que o mistério foi apresentado e a obra já ia pelas quarenta folhas, notamos que Lauro dava exagerada atenção a certa personagem, uma mulher de olhos azuis, deslumbrante, que fumava de piteira e arrebatava os homens que dela se aproximavam (seu criador, principalmente). E tal ia o chamego com a criatura que ele se desviava da história perdendo intermináveis parágrafos em sua adoração; o Lauro sempre gostara de mulheres fatais, falsas, distantes, mas que acabavam em tórrido agarramento com os heróis.
Frequentador dos grandes poeiras da cidade, nosso autor tinha um coração pavimentado de utopias românticas, coisa de cinema americano, e não perderia a chance de curtir um fetiche daqueles. Lembremos que o tema era dele. Paraná e Zé Sérgio (este comandaria um próximo cometimento coletivo: “Macumba em Moscou”) mantinham-se coerentes com o andamento do texto e faziam o possível para que a trama chegasse a termo, tarefa complicada para nossas individualidades tão acesas na época como estrelas de Hollyood.
Eu, mesmo, criei uma negra – inglesa – que não esqueço: Santha Havlock, cuja função era aproximar-se do detetive e, quem sabe, manter com ele um caso de amor. Mas seu destino, como o de todas as personagens da história, ficaria a cargo de quem continuasse a escrever, não havia muito controle sobre o rumo das coisas. Sei que o Lauro, com certeza temendo um embate da negra com a loura da piteira, assassinou Santha Havlock com um tiro certeiro, numa noite gelada de Chelsea ou West Village.
Eu, mesmo, criei uma negra – inglesa – que não esqueço: Santha Havlock, cuja função era aproximar-se do detetive e, quem sabe, manter com ele um caso de amor. Mas seu destino, como o de todas as personagens da história, ficaria a cargo de quem continuasse a escrever, não havia muito controle sobre o rumo das coisas. Sei que o Lauro, com certeza temendo um embate da negra com a loura da piteira, assassinou Santha Havlock com um tiro certeiro, numa noite gelada de Chelsea ou West Village.
Fiquei puto, mas não disse nada: além de bom cabrito, tinha sido criado em São Gonçalo, daí o silêncio. Enquanto corria a barca, situações e personagens eram criados no mais puro estilo bolsilivro. Líamos o material no bar e comentávamos sobre a linha a seguir, embora não houvesse maior coerência com a arquitetura da obra; tudo dependia da inspiração, dos últimos romances lidos ou vividos, dos filmes, da cerveja... Também não tínhamos intenção de publicar nada, o prazer era rir e desenvolver a trama.
Semanas depois, pelo rodar da panela, os originais e a musa do Lauro deram em minhas mãos: na parte que interessava, a loura ia se encontrar com o detetive num cais de Nova Iorque e dar informações importantes sobre o crime da negra.
Era a minha vez!
Fui para casa e na mesma noite tirei a Remington 42, velha de guerra que guardara do Globo quando por lá chegaram os primeiros computadores, e criei a atmosfera:
“Madrugada; o casal estava no carro dela, o cais cheio de ratos e cachorros vadios que trepavam furiosamente; o lugar era envolto por uma bruma que cheirava a lama e maresia; a piteira dela soltava uma fumaça azul, desenhando arabescos contra a paisagem cinzenta dos edifícios... Foi quando rolou o clima. O detetive deu-lhe um beijo e ela disse – em inglês, of course – no meio de acre baforada:
– Posso surpreender os homens, sabia?
O policial não disse nada e foi pra dentro, como se o cais fosse o velho mirante da Boa Viagem ou o tronco de uma conhecida jaboticabeira atrás da igrejinha do Porto da Pedra. A temperatura esquentou rapidamente e ele tornou-se mais corajoso, explorando o corpo da mulher logo abaixo do pescoço.
– Pare em nome da lei, implorava ela.
Mas o private-eye não ouvia nada; aventurava-se por jurisdições que não eram as suas. A certa altura, a mulher travou suas mãos desbravadoras e pediu um cigarro, daqueles que para acender se risca o fósforo no sapato; ele obedeceu, mas logo continuou a exploração, inebriado pelo Eau d’Hadrien que ela usava e pelas sensuais tentativas em detê-lo. Por fim, suas mãos chegaram à parte proibida da história. A Estátua da Liberdade, que dali se via, animava-o no rumo das grandes invasões. Mas algo estranho acontece (minha desforra ia melhor no presente do indicativo): a mão do policial não encontra o que esperava, mas sim um volume grosso, rígido, que mais parecia um bastão de golfe torneado na melhor sequóia das matas de Yellowstone.
– Deus! O que é isto?, exclamou aterrado o detetive.
– Eu não falei que poderia surpreendê-lo, homem da lei?
O policial deu um grito, abriu a porta e desapareceu por entre os armazéns do velho e malcheiroso cais de Manhattan”.
“Madrugada; o casal estava no carro dela, o cais cheio de ratos e cachorros vadios que trepavam furiosamente; o lugar era envolto por uma bruma que cheirava a lama e maresia; a piteira dela soltava uma fumaça azul, desenhando arabescos contra a paisagem cinzenta dos edifícios... Foi quando rolou o clima. O detetive deu-lhe um beijo e ela disse – em inglês, of course – no meio de acre baforada:
– Posso surpreender os homens, sabia?
O policial não disse nada e foi pra dentro, como se o cais fosse o velho mirante da Boa Viagem ou o tronco de uma conhecida jaboticabeira atrás da igrejinha do Porto da Pedra. A temperatura esquentou rapidamente e ele tornou-se mais corajoso, explorando o corpo da mulher logo abaixo do pescoço.
– Pare em nome da lei, implorava ela.
Mas o private-eye não ouvia nada; aventurava-se por jurisdições que não eram as suas. A certa altura, a mulher travou suas mãos desbravadoras e pediu um cigarro, daqueles que para acender se risca o fósforo no sapato; ele obedeceu, mas logo continuou a exploração, inebriado pelo Eau d’Hadrien que ela usava e pelas sensuais tentativas em detê-lo. Por fim, suas mãos chegaram à parte proibida da história. A Estátua da Liberdade, que dali se via, animava-o no rumo das grandes invasões. Mas algo estranho acontece (minha desforra ia melhor no presente do indicativo): a mão do policial não encontra o que esperava, mas sim um volume grosso, rígido, que mais parecia um bastão de golfe torneado na melhor sequóia das matas de Yellowstone.
– Deus! O que é isto?, exclamou aterrado o detetive.
– Eu não falei que poderia surpreendê-lo, homem da lei?
O policial deu um grito, abriu a porta e desapareceu por entre os armazéns do velho e malcheiroso cais de Manhattan”.
Eu vingava Santha Havlock, sacaneava o Lauro e mandava o crime perfeito, aquele em que, para a história, continuar vivo era o mesmo que ter morrido.
Eduardo A. Varela".
7 comentários:
Que texto do caralho! Nunca tinha visto uma piroca descrita com esse rigor estético:"...mais parecia um bastão de golfe torneado na melhor sequóia das matas de Yellowstone."
Estão esperando o quê para publicar essa porra? Olha que eu vivi muito o Bar Natal e não consegui esse requinte de criatividade. Certamente que não bastava frequentar, tinha gene, tinha berço, dinha DNA nessa merda. Vocês foram abençoados por aquele mocotó da madrugada, não tenho dúvida.
Romildo
De minha poltrona de viciado em trash policialesco, exigo que o projeto seja retomado.
Marecha
Espetacular! Publicação já!!!
werneck
kkkkk que cambada de maluco ! Ali atrás do Plaza, próximo ao Senac e nas proximidades do morro do Estado, rola uma roda de samba das boas as sextas depois do expediente, comandada pelo Bembeco, compositor dos bons. Buteco só buteco.
Que bom que você não deu ouvidos à má conselheira gana e continua premiando a nós, seus leitores, com textos geniais como este. Abraços.
oadestradordesentimentos.blogs.sapo.pt
Valeu, pessoal! Principalmente ao Varela, que foi o autor dessa postagem e da boa lembrança dos romances malucos.
Porra, Zé! Genial o romance!
Faço votos, assim como o camrada Marecha, que a empreitada seja retomada.
Grande abraço!
p.s. Desde aquele papo lá na Folha, ando viciado em John Coltrane. O cara é deus!
Postar um comentário