quarta-feira, 17 de junho de 2009

"JORNALISTA É IGUAL A COZINHEIRO?", texto publicado no blog de PAULO MOREIRA LEITE, na versão online de Época

"Quando o Supremo Tribunal Federal decidiu abolir o diploma de jornalista como exigência para o exercício da profissão, uma imagem veio a minha cabeça — esta foto que você pode ver aí acima, de Vladimir Herzog, morto em outubro de 1975, no DOI-CODI paulista.
Conheci Herzog na revista Visão, onde ele era um editor exigente e perfeccionista, que me ofereceu alguns frilas quando eu me iniciava na profissão. Herzog era diretor de jornalismo da TV Cultura, em São Paulo, quando foi conduzido para aquela dependência militar — de onde não saiu com vida. Para muitos jovens de minha geração, Herzog foi um exemplo de coragem e capacidade de resistência.
Muitas décadas se passaram desde então. Vivemos numa democracia estável.
Os tempos mudaram. Jornalistas são ameaçados no Oriente Médio, na América Central, no Irã. Raramente no Brasil.
Ontem, ao justificar o fim do diploma, Gilmar Mendes, presidente do STF, usou palavras assim:
“Quando uma noticia não é verídica ela não será evitada pela exigência de que os jornalistas frequentem um curso de formação. É diferente de um motorista que coloca em risco a coletividade. A profissão de jornalista não oferece perigo de dano à coletividade tais como medicina, engenharia, advocacia nesse sentido por não implicar tais riscos não poderia exigir um diploma para exercer a profissão. Não há razão para se acreditar que a exigência do diploma seja a forma mais adequada para evitar o exercício abusivo da profissão”, disse.
Mendes apontou para uma semelhança original, entre o trabalho de um jornalista e o de um cozinheiro. Ele disse:“Um excelente chefe de cozinha poderá ser formado numa faculdade de culinária, o que não legitima estarmos a exigir que toda e qualquer refeição seja feita por profissional registrado mediante diploma de curso superior nessa área. O Poder Público não pode restringir, dessa forma, a liberdade profissional no âmbito da culinária. Disso ninguém tem dúvida, o que não afasta a possibilidade do exercício abusivo e antiético dessa profissão, com riscos eventualmente até à saúde e à vida dos consumidores.”
Tais Gasparian, a advogada que representou o Sindicato das Empresas de Jornal, afirmou durante julgamento que a profissão de jornalista é desprovida de qualificações técnicas, sendo “puramente uma atividade intelectual”.
Conheci o pai de Tais Gasparian, o empresário Fernando Garsparian. Ele foi dono do jornal Opinião, alvo de perseguição duríssima por parte do regime militar, inconformado com seus artigos sobre a Dívida Externa, sobre o arrocho salarial e outros temas que a censura mantinha fora dos jornais.
Mas o jornal de Gasparian insistia, teimava e publicava. Também trouxe de volta para a imprensa brasileira as idéias exiladas de Celso Furtado, Fernando Henrique Cardoso e outros intelectuais perseguidos. Em minha modesta opinião, pode-se dizer com alguma boa vontade que Celso Furtado, Fernando Henrique, e outros, exerciam uma atividade “puramente intelectual” — não o jornalista que publicava seus artigos.
Não é por fazer pouco das cozinheiras e chefes que não gosto da comparação do presidente do STF. Já obtive, à mesa, alegrias que a maioria das reportagens não me proporcionaram, em iguarias preparadas por profissionais sem diploma de nenhum tipo — só o da labuta da vida.
Mesmo reconhecendo que vivemos num país democratizado, onde respiramos o oxigênio da liberdade nas 24 horas do dia, estranho a comparação. Ao contrário do que disse Gilmar Mendes, a profissão de jornalista oferece sim “perigo de dano a coletividade.” São muitos e recentes os exemplos que demonstram que o mau exercício do jornalismo ajuda a criar preconceitos, consolida mentiras e distorções que uma sociedade pode levar décadas para resolver.
A imprensa que se omite e foge de verdades amargas causa um imenso prejuízo a seu público.
Não estudei jornalismo e não tenho diploma de jornalista. Conquistei o direito de exercer a profissão porque tinha um lugar no mercado de trabalho. Não defendo interesses próprios neste debate.
Minha opinião é que, certa ou errada, a exigência de diploma ajudou a modernizar a profissão de jornalista e elevou o padrão cultural das redações. Num país onde o ensino fundamental e médio são aquilo que são, um diploma é uma diferença positiva. Nossos jornais deixam muito a desejar até hoje mas não há dúvida que o Brasil tinha uma imprensa pior antes do diploma.
Vivemos num país corporativo, onde muitas profissões são fechadas e controladas. Para o sujeito ser advogado, por exemplo, ele não só precisa ter curso superior como precisa passar no exame da OAB. Em minha modesta curiosidade de jornalista sem diploma, eu me pergunto se tantas exigências se justificam pelo fato de que a profissão de advogado oferece “perigo de dano a coletividade” ou se, como o jornalista, ele não pode ser comparado a um cozinheiro?
Tenho dúvidas sobre o caráter democrático do diploma universitário, num país onde a universidade só está aberta à elite. Este me parece um ponto sério a considerar no debate, na medida em que a imprensa é a forma material da liberdade de expressão.
Outra dúvida é: precisamos de um curso de graduação de jornalismo, com quatro anos de duração? Poderia ser um curso de pós-graduação, como em alguns países?
Não tenho dúvida de que o jornalismo é uma técnica, que se desenvolveu a partir do século XIX. As escolas de jornalismo não foram criadas por uma opção pedante de profissionais ou de empresários, mas como parte do esforço das sociedades modernas para produzir e divulgar informações confiáveis.
Noções como isenção profissional, consulta às fontes, equilíbrio, boa fé, foram criadas e aperfeiçoadas neste processo. A idéia de conflito de interesses foi definida e sistematizada, tornando questionável o trabalho de quem é jornalista nas horas de folga.
Embora não precisem mais de um diploma, eu acho que os candidatos a jornalistas continuam precisando de boa escolas. Essa é a questão a se resolver, daqui para a frente".
Texto e foto extraídos do blog do jornalista Paulo Moreira Leite, da Época Online.
Coloquei aqui porque concordo integralmente. Acabo de postar um comentário lá.

2 comentários:

Qual delas? disse...

Nos idos dos anos 70 fui procurado por um grupo (uma meia dúzia) de professores de Educação Fisica de Niterói/São Gonçalo (RJ). Alguns, então ex-craques de futebol profissional. O desespero havia tomado contra deles, por conta da legislação que passava a exigir o diploma superior de Educação Física para o exercício de suas profissões. Uma faculdade no subúrbio do Rio de Janeiro oferecia este curso. Mas como estas pessoas de tão pouco estudo poderiam ingressar numa faculdade sem uma ajuda externa? Daí o motivo que me procuraram. Eu, jovem e estudante, prestaria os exames vestibulares numa mesma sala com eles para dar uma "forcinha". Não vou contar o desfecho, mas que eles continuaram a trabalhar, isto eu posso revelar.

André Sant'Anna disse...

Pois é, para mim, um jovem jornalista cheio de sonhos e expectativas, a decisão do STF cai como um banho de água fria, desmotiva, entristece...
Uma pena ver a profissão que sempre sonhei ter um fim desses...