O nepotismo vem de longe na história universal – foi inventado pelos Papas da Idade Média que escolhiam seus sobrinhos para cardeais (aí tem, ou melhor, tinha!). No Brasil, o primeiro caso foi flagrado na carta de Pero Vaz de Caminha. Depois de contar as maravilhas do Novo Mundo, o sacana aproveitou o embalo e pediu ao Rei de Portugal a transferência do genro (e um carguinho melhor, estava implícito!).
Quinhentos anos depois da epístola de Pero – os filólogos ensinam que vem daí a gíria pistolão –, muita água passou por baixo do moinho (por cima, somente mediante comissão) e os Trens da Alegria, de tempos em tempos, percorrem alegremente os ramais dos Três Poderes, transportando irmãos, primos, sobrinhos, cunhados, genros, noras, sogras e até ex-mulheres e ex-maridos com destino aos salários mais polpudos da administração pública.
Pois é, mas nem sempre esse negócio de colocar a parentada pela janela é nociva. No Rio de Janeiro, um exemplo de nepotismo que deu certo foi o da família Sá, do Estácio nosso fundador, que se aboletou no poder e botou os franceses para correr, nos quinhentos de nossa história.
Cinco séculos depois, surgiu outro nepotismo do bem - a Escola Portátil de Música, fundada em 2000 por músicos de choro e hoje tendo como coordenadores os craques Luciana Rabelo, Maurício Carrilho e Pedro Aragão. A Escola Portátil funciona nas instalações da Uni-Rio, na Praia Vermelha, com duas dezenas de professores e mais de 800 alunos que aprendem ou tentam aprender tudo quanto é instrumento e, também, canto, harmonia, arranjo e composição.
Os mestres fazem parte da nata dos instrumentistas de choro do país. E entre os alunos, tem de tudo - desde a garotada que em breve vai brilhar nos palcos até os cascudos, como eu, que estão lá pra fazer menos feio nas rodas de samba e de choro familiares e dos botequins. E o que se paga pelo aprendizado é mixaria – a semestralidade equivale a uma ou duas mensalidades de aulas particulares.
Tem nepotismo na EPM? Tem sim, mas o nepotismo de lá é sinônimo de meritocracia. E disso sou testemunha mais ocular do que ouvinte do Repórter Esso (pararará parararará papá), pois participo como aluno deste projeto cultural e social realmente fantástico, em parte bancado pela Petrobras, tendo como professores um pessoal de primeiríssima, muitos pertencentes a respeitáveis dinastias musicais – os Carrilho, Rabello, Aragão e Silva, entre outros sobrenomes ilustres.
Seguindo a ordem acima, os Carrilho têm cinco representantes na EPM. Álvaro Carrilho é flautista, nascido em Santo Antônio de Pádua como o irmão e lenda viva Altamiro Carrilho. Começou na flauta de bambu, passou para a transversa e compôs delícias como Chorando em Barbacena, Na sombra da caramboleira e De pai para filho. O filho César, nem sei se toca algum, mas é o homem dos sete instrumentos da escola, o coordenador da produção. Afinal de contas, alguém tem que trabalhar na família, pombas! Figuraço que, vez por outra, e com toda a razão, dá esporro na rapaziada que esquece de levar de volta para o devido lugar as cadeiras usadas no Bandão. O outro filho de Seu Álvaro, o genial Maurício Carrilho, é violonista, arranjador, compositor inspirado e um dos fundadores e coordenadores da EPM. Com muita estrada, Maurício Carrilho já acompanhou grandes nomes da música, como Aracy de Almeida, Elizeth Cardoso e Nara Leão. Cantar, ele não canta, mas berra no Maracanã quando o Flamengo perde. Do clã também faz parte a violonista e cantora Anna Paes, casada com Maurício Carrilho e mãe de Anita, que tem nove anos e está aprendendo pandeiro na EPM. Anna Paes é também uma afiada pesquisadora responsável pelo levantamento da obra de compositores de choro. Na EPM, que ajudou a fundar, ensina canto e violão.
A forte presença feminina na EPM tem nas irmãs Luciana e Amelia Rabello, e na filha de Luciana, Ana Rabello, três destaques. Luciana, há 30 anos na profissão, é cavaquinista, compositora e produtora. Aprendeu tudo com os mestres do cavaco Jonas (do Época de Ouro de Jacob do Bandolim) e Canhoto (do Regional que herdou de Benedicto Lacerda e que fez história nos anos dourados do rádio e dos cassinos) e hoje democratiza este notório saber na EPM. Mestra rigorosa, temperando esse rigor com um humor fino, Luciana transmite os fundamentos do choro, do samba e de outros gêneros e ritmos brasileiros para que seus alunos não cometam no futuro crimes hediondos contra a música brasileira. Ana Rabello, ex-aluna da EPM, filha de Luciana e do grande poeta do samba Paulo César Pinheiro, é outra integrante do corpo docente do cavaco e de seu currículo constam numerosas participações em shows e gravações ao lado de monstros sagrados com os quais convive desde os tempos do berço e do bebê-conforto. Amelia Rabelo, irmã de Luciana e do inesquecível sete cordas Raphael Rabello, é cantora de rara afinação e que sabe tudo dos fundamentos do choro e do samba. Entre os CDs que gravou, o Todas as canções, lançado em 2002, reúne a obra autoral de Raphael, de quem foi a principal intérprete.
O único nepotismo que deu certo no Brasil tem representantes também na ilustre Casa dos Aragão, que tem um violão e um bandolim pintados no brasão. Embora essa dinastia seja numericamente inferior – são apenas dois irmãos, por enquanto –, não fica a dever em talento. O bandolim do escudo heráldico pertence a Pedro Aragão, que na EPM ministra aulas de Leitura Rítmica e Apreciação Musical e nos estúdios e shows ao vivo vem se destacando como um dos bandolinistas mais competentes e requisitados. Regente formado pela Escola de Música da UFRJ, Pedro é também o maestro do Bandão da Escola Portátil de Música, que todos os sábados, a menos que chova, a partir de 12h30m, põe em prática o que os alunos estavam aprendendo pouco antes, nas salas de aula. Pedro Aragão também é diretor e fundador do Instituto Jacob do Bandolim e fundador e regente do Rancho Carnavalesco Flor do Sereno. Seu irmão, Paulo Aragão, mestre em Musicologia pela Uni-Rio e bacharel em Violão pela UFRJ, nos dois cursos aprovado com louvor, é integrante do Quarteto Maogani de Violões, pelo qual já lançou quatro discos. O Maogani é um grupo altamente conceituado no cenário musical brasileiro, conjunto instrumental de extremo bom gosto, vencedor de prêmios importantes e que se destaca por sua produção fonográfica de alta qualidade, reconhecida no Brasil e no exterior. Um grupo que modestamente vi nascer nas noites de domingo do bar Orquídea, em Nikity. Como se não bastasse, os irmãos Aragão têm outra grande qualidade – ambos são botafoguenses!
Last, but not least, outra linhagem que comanda os trabalhos na EPM é formada por três gerações da família Silva. Eles mesmos, os Silva do pandeiro – avô, pai e neto. O couro come a partir do patriarca das platinelas, Jorginho do Pandeiro, que toca desde os 14 anos e viveu a era de ouro do rádio brasileiro, ao lado de astros e estrelas como Sílvio Caldas, Elizeth Cardoso e Carlos Galhardo, entre outros, até os dias de hoje, quando acompanha craques da estirpe de Paulinho da Viola ou Chico Buarque. Jorginho integra há 40 anos uma das maiores referências do choro, o conjunto Época de Ouro, criado por Jacob do Bandolim. É irmão do genial Horondino Silva, o Dino Sete Cordas, que se fosse vivo, quem sabe, também estaria dando aulas na EPM. O percussionista Celsinho Silva, filho de Jorginho, outro pioneiro e um dos mais bem-humorados professores da Escola Portátil, também já encontrou seu lugar entre os grandes pandeiristas e chorões do Brasil, desde sua estreia no grupo Os Carioquinhas, do qual também fizeram parte Raphael Rabello, Luciana Rabello e Maurício Carrilho. Integra também o Nó em Pingo d´Água e há 30 anos faz parte do grupo que acompanha Paulinho da Viola. Com esse DNA todo que vem no sangue, não teve jeito: Eduardo Silva, também professor da EPM, deu continuidade à arte do pai e do avô. Embora seja o mais novo dos três, é o único que não tem inho no nome artístico. Eduardo é fundador do Regional Carioca e toca e/ou já tocou em grupos importantes como o Sarau.
Pois é, e além desse pessoal todo já citado, a EPM conta também, no seu corpo docente, com o talento do percussionista Oscar Bolão, dos bandolinistas Pedro Amorim e Marcílio Lopes, do pianista Cristóvão Bastos, dos cavaquinistas Jayme Vignoli e Ignez Perdigão, do violonista Luiz Flávio Alcofra, da flautista Naomi Kumamoto, da cantora, instrumentista e fera em harmonia Bia Paes Leme, entre tantos outros.
Deu vontade de aprender algum instrumento? Deu vontade de aproveitar essa pauta e escrever sobre esse timaço? Visite o site www.escolaportatil.com.br ou, melhor ainda, apareça num sábado desses, sem chuva, pouco depois do meio-dia, pra conferir uma apresentação do Bandão. A EPM fica na Avenida Pasteur 436, fundos. É 0800, digrátis. Neste vídeo de 2007, o Bandão toca Gafieira Suburbana, de Cristóvão Bastos.
3 comentários:
Artigo porreta, v. só falta ser vascaíno para v.atingir a perfeição. A
respeito do nepotismo (de nepote), ha alguns anos, quando da comemoração
dos quinhentos do nosso Brasil, eu cometi um samba que abordava o
assunto e era assim:
Brasil, 500 anos de sacanagem
Tudo começou quando a quadrilha
de um bravo navegante português,
confundindo um continente com uma ilha
vacilou de vez...
E o país colonizado
por safado e por ladrão,
em pilantropia e sacanagem
é campeão!!
O Vaz Caminha, escrivão,
pedindo emprego pro Rei
fundou o tal pistolão
mais poderoso que a lei, Bis
pela madeira que foi
pro reino de Portugal
nosso país tem nome
de um pau...
O primeiro Imperador
gritou e foi pra cama da marquesa...
O seu filhote se deu mal
no Baile da Ilha Fiscal...
E a República chegou!
A rataria comemora!
Agora sim, chegou enfim
a nossa hora!!!
E aquela ilha, ó Cabral,
virou país do bumbum,
o desemprego é geral,
o rei é um-sete-um...
Tem um baiano que é
o maior cara-de-pau...
Isso é o "Real"!
Não esqueçais que o ano é de 2000, FHC no trono e LCM distribuindo
bondades...
Um amplexo. Gudibái.
Floriano Carvalho
Zé, que beleza de história! Você pegou do nada, do nepotismo, da nossa história e contou uma verdadeira saga musical, de gente que ajuda a fazer a boa música brasileira. Vou lá ouvir o Bandão num sábado desses, como você sugere. Você só podia ser botafoguense...
Floriano, tudo ia bem no seu comentário até aquela história de me confundir com vascaíno. Ainda bem que o Romildo pensa diferente. Romildo, aparece lá sim. Me avisa quando for para eu caprichar no pandeiro hahaha
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