quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

QUEM É VIVO, ÀS VEZES, DESAPARECE!!!

Mal começou, este blog resolveu imitar a Vale: deu férias coletivas à equipe. O único funcionário - alterego em versão beta - inicia, a partir de amanhã, sua manutenção anual e volta depois do primeiro fim de semana de janeiro, que ninguém é de ferro. Vai com a família, na companhia dos irmãos Karamablochs, do Quarentinha, do Laurentino, do Rex Stout, do Heleno de Freitas e do Nietzsche. Medo da crise? Claro. Mas 2009 não vai ser nem marolinha nem tsunami. Sou mais a piada velha do garotão escolhido pajé. Os coroas perguntaram logo na estréia se o inverno seria rigoroso. Cavalo Sardento (eleito com apoio da base aliada) fez cara inteligente, olhou pro céu e respondeu que sim. No dia seguinte, insistiram: mais rigoroso do que no ano anterior? Disfarçando o pânico, o pajé balançou a cabeça - sim. No terceiro dia, os mesmos malas: "Estamos quer dizer que estamos fodidos?". Cavalo Sardento disse que ia consultar os ancestrais, correu para o orelhão da Funai e ligou para a Meteorologia. "Boa tarde, meu nome é Máicom Anderson. O inverno vai ser brabo?". O mané do outro lado do fio respondeu no ato: "Pode crer, meu chapa! Os índios tão cortando lenha pra cacete!".
O blog volta em janeiro, prometendo nunca mais contar piada velha.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

LAURO E PARANÁ: VETADOS EM COMERCIAL

Lauro Affonso Faria e Wilson Soares de Magalhães: unidos pela força da cevada
Conheci a dupla da foto acima no curso de cinema da UFF. Lauro e Paraná fizeram história na noite do Rio e de Niterói. Juntos, foram responsáveis por uma sucessão de superávits num dos maiores períodos de crescimento da Companhia Cervejaria Brahma, dos anos 70 aos 90. Quando os dois se formaram e cada um foi pro seu canto, a Brahma nunca mais foi a mesma. Teve que se unir à Antarctica para sobreviver. O canal de tv a cabo ManagemenTV está preparando um documentário a respeito que teria, no intervalo, um comercial com essa dupla impagável, mas agora é tarde! Paraná, que já gostava de whisky, não quer mais saber de outra bebida. E o Lauro (quem diria?) foi visto um dia desses tomando Itaipava. E, pior ainda, gostando! Nesta foto, tirada em 15/11/08, no Mercado São Pedro, em Niterói, os dois patifes, de olho no polpudo patrocínio do programa, tentam resgatar a velha imagem, servindo-se de quantidades industriais de Brahma Chopp, mas o pessoal da AmBev não engoliu a história.

DUAS HISTÓRIAS QUE NÃO ESTÃO NO GOOGLE

A internet é ferramenta hoje indispensável para quem precisa localizar rapidamente qualquer coisa, descobrir um endereço, xeretar a vida de qualquer um que tenha tido seus 15 minutos de glória, aprender o essencial ou mergulhar em assuntos relevantes e inúteis. O bebê tossiu? A mãe entra no site do doutor Dráuzio Varella. O motor do carro pifou? O dono procura respostas no Yahoo! Aquele canalha foi eleito vereador? Quem sabe o blog do maior inimigo dele conta algum podre? Como era mesmo o nome da alagoana que espancava o marido governador com toalha molhada? Entre no Google e descubra.
Para sorte nossa, esses troços, embora porretas, são recentes. A escola ainda é e será por muito tempo o melhor veículo de transmissão de conhecimento. E à medida que envelhecemos, todos nós, que ao longo da vida passamos por tantos episódios estranhos e conhecemos pessoas interessantes, todos, sem exceção, algum dia seremos Forrest Gump. Enquanto o tempo não passa, conto aqui algumas histórias que ouvi dos mais velhos.
NEM SEMPRE O CÉU É O LIMITE
Certa vez, procurei o já veterano publicitário, radialista e homem de televisão Sangirardi Jr. para uma matéria da revista “Shell Notícias”, publicação muito interessante que abria espaço para pautas culturais, editada por meu amigo, o jornalista Chico Aguiar, que hoje trabalha na Petrobras. O entrevistado morava numa ladeira de Copacabana, no posto 2. Autor de alguns dos jingles mais famosos da história do rádio, deixou inédito (até hoje) um livro no qual traçara perfis de gente que se destacou na primeira metade do século passado, a maioria de São Paulo. Todos eram amigos do Sangirardi. Estão nesses originais datilografados, entre outros, Mário de Andrade, Lasar Segall, Flávio de Carvalho e Artur Friedenreich. Até hoje, esse livro não foi publicado. Houve tempo, há mais de dez anos, em que procurei medalhões da propaganda e editoras para propor o lançamento do livro. E nada cobraria. A viúva e a filha, ambas muito simpáticas, também não estavam interessadas em dinheiro. Sei que algumas historinhas e casinhos engraçados daquele monstro da publicidade devem estar reunidos em sites (olha a internet aí, mas nada do que estou contando agora figura no Google), mas não passa disso. Os interessados que entrem no 102 da Telemar/Oi e procurem os parentes desse gênio.


Cleópatra, pivô de racismo na televisão brasileira

Sangirardi, que no Google você vai conhecer mais como autor de livros sobre plantas afrodisíacas e alucinógenas (um de seus hobbies), era produtor de um dos programas de TV de maior sucesso em São Paulo e no Rio de Janeiro, nos anos 50 e 60. “O Céu é o limite”, apresentado por Jota Silvestre, foi o precursor dos programas de perguntas e respostas na TV Tupi. Num desses programas, um motorista de ônibus, negro, morador em São Paulo, que sabia tudo sobre Cleópatra, a rainha do Egito, estava prestes a ganhar o grande prêmio. O bordão do Jota Silvestre, sempre que alguém acertava a resposta, era “Absolutamente certo!”. O cara estava de casamento marcado e, com este grand finale, receberia a casa toda montada com móveis de ótimas madeiras e eletrodomésticos das melhores marcas, além do dindim de responsa.
Chegou até o final? Chegou, mas não levou. Uma semana antes do último programa, o produtor Sangirardi Jr. foi “convidado” a comparecer ao Ministério da Guerra. Ainda não havia ditadura militar, mas Sangirardi ficou cabreiro. Pensou que alguém o havia denunciado como membro do Partido Comunista, algo assim. Não era nada disso. Foi recebido por um general de quatro estrelas, que se declarou fã do programa e apontou sobre a mesa quatro ou cinco livros grossos, alguns em inglês, outros em francês, biografias de Cleópatra jamais editadas no Brasil.
“Leve esses livros. Com certeza, aquele negro não leu nenhum deles. Aí tem detalhes da vida de Cleópatra que ele jamais responderá”.
“Mas general...”.
“O senhor não vai permitir que um crioulo vença no seu programa, não é? Seria um absurdo! Crioulo não pode entender de Cleópatra”.
Sangirardi não se entregou:
“O problema, general, é que as regras do programa me impedem de usar qualquer livro que não tenha sido editado no Brasil. Infelizmente, não posso atendê-lo”.
“Então, ponha-se daqui para fora!”, ordenou o militar.
O produtor saiu da sala da alta patente escorraçado, mas de cabeça erguida. E torcendo para que o rodoviário ganhasse.
E ganharia, se quisesse. Antes de fazer a última pergunta, Jota Silvestre perguntou ao participante de “O céu é o limite!” se iria continuar ou se contentava com os prêmios já recebidos. Se concordasse, sairia sem a montanha de dinheiro, mas teria a casa toda equipada. Pressionado pela noiva, o especialista em Cleópatra amarelou. Preferiu o prêmio de consolação. Quando ouviu a última pergunta, escolhida sob medida por Sangirardi, não escondeu a tristeza. Era mais fácil do que a maioria das que respondera nas primeiras fases do programa.

JANGO E CASTELO BRANCO, UMA ESTRANHA ALIANÇA
Raul Ryff, jornalista que trabalhou no Jornal do Brasil dos bons tempos e último Secretário de Imprensa da Presidência da República antes do golpe – foi o Franklin Martins de João Goulart – manteve até a morte sua fidelidade ao presidente, que tinha o apelido de Jango. Comunista que aderiu ao trabalhismo – em 1935, ele conseguiu escapar da polícia de Filinto Müller, mas sua mulher, Beatriz Bandeira Ryff, dividiu a mesma cela com Olga Benário, mulher de Luiz Carlos Prestes – guardou histórias saborosas, algumas contadas num livro de memórias. Uma delas, que seus parentes e descendentes hão de lembrar, não foi publicada em “O fazendeiro Jango no governo” porque, segundo dizia o gaúcho velho, poderia ser interpretada como elogio ao primeiro general presidente da safra de 1964.


A foto mais famosa de Jango Goulart, com sua mulher Maria Teresa, no comício da Central do Brasil, em 13/3/64

Isso também não está no Google, mas em 1964 ou 1965, lá em Montevidéu, João Goulart recebeu uma denúncia: o regime militar estava construindo um campo de concentração para torturar, prender e matar seus opositores. Mesmo sabendo que fascistas faziam parte do núcleo de poder em Brasília, Jango não quis acreditar nisso. Por via das dúvidas, contratou um fotógrafo da revista “O Cruzeiro”, que lançara uma edição em espanhol no Uruguai, para ir aos arredores do Alegrete ou de Dom Pedrito, um desses municípios, conferir a denúncia.
O fotógrafo cobrou caro, pelos perigos envolvidos, mas cumpriu a missão. E entregou a Jango, em seu rancho, fotos que comprovavam a veracidade da acusação. De acordo com Ryff, imediatamente mandou uma carta a seu sucessor no Palácio da Alvorada (na época, sede do governo, hoje residência do presidente), entregue em mãos.
Na carta, dirigindo-se ao destinatário como “Senhor general Humberto de Alencar Castelo Branco”, Jango foi claro: ou Castelo acabava com o tal campo de concentração de inspiração nazista ou botaria a boca no trombone. A reação de Castelo Branco teria sido melhor do que ele esperava. O general teria ficado realmente enojado com o projeto, levado a cabo pela Linha Dura do regime, e respondeu, verbalmente, ao emissário: “Diga ao senhor João Goulart que a denúncia será investigada e, se for julgada procedente, pode considerar que aquilo terá um fim imediato”.
Ao saber da resposta, Jango chamou de volta o fotógrafo e o enviou ao mesmo local. E as notas fotos demonstraram que Castelo Branco cumprira a palavra. Goulart teria agradecido em outra carta.
No entanto, mesmo não havendo um Auschwitz nos pampas, outros centros de tortura prosperaram durante os 20 anos de sufoco. Mas Castelo Branco já havia morrido, num acidente aéreo em seu estado natal, o Ceará. A Linha Dura efetivamente ocupou o poder durante os governos Costa e Silva e Médici, incluindo o período em que o país foi dirigido por uma Junta Militar. Somente depois dos episódios de tortura e morte do jornalista Vladimir Herzog e do operário Manuel Fiel Filho, foi dado um basta pelo general Ernesto Geisel.
Nunca li essa história de Raul Ryff em lugar nenhum. Ele a contou no tempo em que era redator da Editoria Internacional do Jornal do Brasil, em meados dos anos 70.
Raul Ryff nunca me pareceu um mentiroso. Com a palavra, os historiadores e repórteres que se interessam por nossa História.

segunda-feira, 22 de dezembro de 2008

ANO NOVO NA REDAÇÃO E OUTRAS HISTORINHAS

Ano Novo no Globo. Fui escalado para alguns, mas geralmente era liberado antes da meia-noite. Uma vez, não tive refresco. E o pior é que não acontecia nada. Na Redação, meia dúzia de colegas: o repórter de plantão na Geral, o magrinho e elétrico diagramador Maurício (o popular Nimrod), o secretário da Redação... que adorava passar a data em sua estação de trabalho. Que figura, o Carlos André Marcier! Virou tradição da casa: à meia-noite, ele pegava o trompete e tascava, para desespero geral, a valsinha ianque letrada pelo Braguinha. Adeus, amor/ Eu vou partir/ tralalá tralalá. Não sei por onde anda o Marcier. A melhor história dele aconteceu às vésperas de seu pedido de demissão. Ganhara uma nota preta de herança, mas fez questão de trabalhar até o fim do mês. Num dos últimos plantões, já com os classificados em mãos, eu e Nimrod o ouvimos acordar um sujeito de madrugada e fazer a primeira oferta de compra de uma moto Kawasaki. O cara deve ter dito logo depois pra mulher, na cama:
“O Globo é foda! Anunciou, vendeu na véspera!!!”.

O fim dos tempos segundo o contrabandista
1986 foi o ano do cruzado, a nova moeda, e dos fiscais do Sarney. Foi, também, ano de eleição, aquela em que Darcy Ribeiro, do PDT, perdeu o governo do Estado do Rio de Janeiro para Wellington Moreira Franco, o genro, candidato do PDS, o partido que sucedeu a Arena dos militares. O Jornal do País, do político maranhense Neiva Moreira, ligado a Brizola, não ia bem das pernas. Na virada do ano, o dono jogou a toalha. Luiz Mário Gazzaneo, o editor-chefe, ficou de saco cheio e me passou o comando. Eu era o subeditor-chefe e cuidaria do derradeiro número. Elias Fajardo editava o caderno de cultura. Maria Helena Dutra era nossa crítica de TV. O jornal pedetista da Rua da Lapa tinha ainda em sua pequena equipe João Batista de Abreu Júnior (hoje, professor da UFF), Domingos Trevisan (depois dono de emissora de TV no Paraná) e o caladão e promissor Chico Otávio. O diagramador era o Leo Malina. E a dupla de fotógrafos, dois veteranos de boa estirpe, era egressa de O Cruzeiro. Fizemos um jornal decente na despedida, mas eu e João Batista tivemos uma idéia maluca: fazer uma matéria com o Danilo.
Que Danilo? Danilo era o contrabandista de confiança dos jornalistas cariocas. Percorria semanalmente as redações do Rio vendendo, nos bons tempos, seus importados. Ultimamente, passara a vender queijo e lingüiça que trazia de Juiz de Fora e região. Tava feia a coisa. A entrevista ficou bacaninha e foi acompanhada de uma tabela radiografando a ressaca do Plano Cruzado, que iludira tantos otários. Danilo contou-nos que, no tempo dos salários mais decentes, um editor de jornal comprava todo mês uma caixa de uísque escocês e cinco ou seis pacotes de cigarros americanos; um redator geralmente comprava duas ou três garrafas de scotch e pelo menos três pacotes de Parliament; um repórter... O título era forte, falava na queda do poder aquisitivo do jornalista. Foi nossa vingança bem-humorada dos patrões, sejam de direita ou de esquerda.

Um chato liga para saber do jogo
Toca o telefone na Editoria de Esportes. Alguém quer saber o resultado do jogo. Um porém: era o Brasil disputando vaga na semifinal da Copa de 94. Caiu a ficha? O país inteiro grudado na TV, no rádio de pilha, na conversa dos vizinhos, o Alzirão e milhares de ruas enfeitadas do Oiapoque ao Chuí, assistindo a partida contra a Holanda, jogo pra lá de histórico, movimentadíssimo, sobretudo no 2º tempo, quando os três gols amarelinhos e os dois laranjinhas queimaram o barbante. Só podia ser sacanagem de alguém, quem sabe do então redator Márcio Tavares, o maior gozador do 2º andar da Irineu Marinho, 35. “Pra cima de mim não, meu chapa. Diz a esse puto aí...”.
“Mermão, não é nada disso (a voz do cara era pura aflição). Fiquei preso na porra de um elevador! Consegui sair agora. Não tem mais ninguém no prédio. A rua em frente está morta. A TV da minha sala pifou. E tô ligando da recepção, que tá vazia, porque o porteiro foi encher a cara na esquina e trancou tudo!”.

Beaujolais com 200 gramas de mortadela
Pescoção no JB era novidade até que um dia foi implantado lá também, final dos anos 70. Para amenizar o castigo de trabalhar até altas horas, o pessoal da Economia, por sugestão do subeditor Luiz Gonzaga Larqué, comprou uns vinhos, uns queijos, uns pãezinhos. Trabalho só depois do pequeno banquete. Na Internacional, a idéia foi copiada pelos editores Renato Machado e Luiz Mário Gazzaneo. Amante de bons vinhos, Renato chega com o mais novo Beaujolais. Andréa e Aluízio trazem um queijo francês. Teresa e Gazzaneo, presunto de Parma. Tudo teria corrido muito bem se o redator Osvaldo Maneschy não tivesse ameaçado fazer um misto frio, roquefort com a mortadela que nem Sadia era, juntos e misturados no pãozinho francês também trazido de uma padaria niteroiense. Nosso editor, futuro colunista de vinho, quase teve um troço.

Qual é nossa manchete de amanhã?
Hedyl Valle Júnior foi um dos chefes mais engraçados que tivemos no JB. Todas as noites, uma mulher – não se sabe de que veículo concorrente – ligava para saber qual seria a manchete do JB no dia seguinte. O chefe da Redação, Paulo Henrique Amorim, sapateava nervoso embaixo da cadeira com a demora no fechamento. Na hora de sempre, o telefone do Copy Desk tocou. Era a tal mulher. “Um momentinho, minha senhora”, diz o Hedyl e se dirige ao chefe, seu amigo: “Paco, aquela senhora quer saber qual será nossa manchete de amanhã...”. Paulo Henrique responde furioso: “Sei lá, Hedyl! Quem tem que saber é você, que ainda não fechou essa porra!”. Hedyl volta ao telefone com a mesma voz tranqüila: “Minha senhora, é o seguinte: eu não só desconheço qual será nossa manchete, como acabo de levar um esporro do meu chefe por causa de sua pergunta. Passar bem!”.

Cuidado com o que fala. Pode custar caro
Joaquim Campello Marques ficou anos sem tirar férias no JB porque fazia parte da equipe que estava criando a moderna edição do dicionário Aurélio. Não arredava pé do jornal, segundo ele, para não perder o contato com a língua. Foi pelo Campello que soubemos de uma novidade: até as palavras podem ter dono. É o caso de pré-estréia, bela solução encontrada para substituir a expressão francesa avant-première, em voga. O Aurélio nunca deixa de citar o proprietário.

Papa libera a masturbação
João Zicardi Navajas, futuro diplomata, era redator da Internacional do JB. Estava de plantão quando chegou a matéria da ANSA, agência de notícias italiana que vendia seu conteúdo ao JB, dizendo algo assim: tendo em vista a crise de vocações sacerdotais, o Vaticano estava cogitando de suavizar o regime dos seminários católicos, pondo fim a certas punições infligidas aos seminaristas mais jovens e ainda vulneráveis às tentações da carne. Zicardi não conversou. Tascou a seguinte manchete numa página interna, em segundo clichê:
“Papa libera a masturbação”.
Mas a secretaria do jornal deu o contra. Uma pena! Era o que a matéria dizia.

O pipoqueiro ganhava mais do que a gente
Alexandra Bertola, já veterana do Globo, um noite tomava seu chopinho sagrado no bar do Felipe, esquina de Santana com Irineu Marinho. O grupo que pedia a saideira, depois do fechamento, reclamava dos salários que andavam baixos. Alguém comentou que o pipoqueiro que fazia ponto em frente ao buteco faturava tantos cruzeiros. Bertola não se conformou.
No dia seguinte, o jornal perdia uma grande repórter. Uma das poucas pessoas que enfrentaram certo senador baiano, de iniciais ACM, que se julgava sócio do doutor Roberto.

O acento e o assento
“Hedyllllllll!!!!”, berra o chefe de Redação.
“Fala, Paco”.
“Júri tem assento????”.
Na hora do fechamento, todo mundo cansado, não é raro dar um branco.
“Claro que tem!”.
“Como claro????”, insiste Paulo Henrique.
“Já pensou o sujeito ficar horas e horas no tribunal... ouvindo rrrrrréplicas... ouvindo trrrrréplicassss... sem um mísero banquinho para sentar?”.

"Me inclui fora dessa"
Paulinho hoje dirige uma van na Barra da Tijuca e é querido pelos passageiros, atesta um deles, minha amiga Cláudia. Moreno, baixinho, falante, o cara foi diagramador do Globo. Uma vez, encantado com o texto do mestre Fernando Calazans, matou a pau: “Modéstia à parte, o Calazans escreve MUITO!”. Outra sacada do Paulinho virou bordão que já ouvi até longe do Rio, mas um monte de gente que trabalhou no Globo, nos anos 80, pode testemunhar a real autoria. O dedo do editor girava, apontando os coitados que ralariam no Pescoção, ou seja, trabalhariam na madrugada de sexta para sábado, fazendo a edição de domingo. “Você, você...”. Sentindo a bola quicar perigosamente em sua área, Paulinho fez o corta-luz genial:
“Chefia, me inclui fora dessa!”.

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

QUEM APADRINHOU O AI-5?

No dia 13 de dezembro de 1968, o estudante de Engenharia da UFRJ Cid Queiroz Benjamin tinha 20 anos de idade e soube pelo rádio que o governo Costa e Silva havia baixado o Ato Institucional nº 5. Ainda não estava na clandestinidade, mas já não morava com os pais. Por motivo de segurança, dormia em casas de namoradas e amigos, e preparava seu ingresso na luta armada – o que aconteceu durante o carnaval de 1969.
Um ano depois da metralhadora surrupiada de um sentinela da Aeronáutica, os órgãos de segurança do regime militar comemoraram sua prisão, em conseqüência do seqüestro do embaixador norte-americano Charles Burke Elbrick, e o exibiram como troféu por ser o comandante do setor armado mais ativo da época no Rio, o MR-8.
Depois de dez anos de exílio na Argélia e na Suécia, Cid voltou logo que a Anistia foi decretada, em 1979. Eu o conheci, sempre bem-humorado, apaixonado pelo samba e pelo país onde nasceu, quando trabalhávamos no Globo, nos anos 80, e logo o elegi amigo de infância.
Eu só, não. Muita gente, inclusive o Paulo Siqueira. Paulo Siqueira, já falecido, foi seu mestre no jornalismo. Só o amor ao Flamengo de ambos explica aquela amizade maluca. Siqueira, direitista assumido e mal-humorado, era no entanto gente muito boa e excelente profissional.
Cid merece perfil bem maior do que este, mas vou parar por aqui, para que ele dê sua versão do Ato Institucional nº 5 e analise, 40 anos depois, o momento político em que foi baixado o documento asqueroso. Esse texto foi publicado pelo JB no “aniversário” daquilo.

AI-5: AFINAL , O QUE FOI E QUEM O APOIOU?
Cid Benjamin

"Tornou-se lugar comum dizer que o AI-5 significou um golpe dentro do golpe e abriu caminho para os anos de chumbo da ditadura militar.
É a verdade.
Afinal, se para derrubar o presidente João Goulart havia unidade entre os militares golpistas, não havia consenso entre eles sobre o que fazer depois de afastado “o perigo de uma república sindicalista”.
Uns, como Castello Branco, queriam a volta a um regime civil em prazo não muito longo. Seu objetivo era, retirando os militares da linha de frente, marchar para uma democracia restritiva, com “salvaguardas” que impedissem avanços no caminho de reformas democráticas e sociais mais de fundo.
Outros, da autodenominada “linha dura”, desejavam estender no tempo o regime recém-implantado e aprofundar seu caráter ditatorial e suas características mais brutais.
A edição do AI-5 coroou a vitória da extrema-direita nessa disputa. Quase tão pueril quanto culpar o inexpressivo discurso de Márcio Moreira Alves na Câmara pelo endurecimento do regime seria responsabilizar a resistência estudantil ou as incipientes ações de grupos armados que começavam a se organizar para combater a ditadura. O fechamento teve sua origem dentro do próprio regime.
Culpar os que resistiram à ditadura pelo advento do AI-5 e dos anos de chumbo equivale a responsabilizar os maquis pelas atrocidades das tropas nazistas na França ocupada.
Dito isto, dois aspectos relacionados com a ditadura e o AI-5, em particular, devem ser lembrados.
Primeiro: hoje, quando a questão da tortura volta à cena, por conta do debate acerca da impunidade ou não dos torturadores, é preciso destacar a relação direta do AI-5 com a institucionalização da tortura na ditadura. Ao proibir a concessão de hábeas-corpus para presos políticos, o regime deu carta branca aos carrascos. Uma vez presa, a pessoa podia ficar incomunicável pelo tempo e nas condições em que o aparelho repressivo determinasse.
Em muitos casos – e nem vamos falar aqui dos “desaparecidos” políticos - as prisões sequer eram legalizadas imediatamente. Dou meu próprio exemplo: fui preso em 21 de abril de 1970. Mas durante 20 dias permaneci no limbo; a oficialização da prisão deu-se apenas em 11 de maio. E, depois, continuei incomunicável e sujeito a todo tipo de violência no DOI-Codi. Mas aí, pelo menos, já existia oficialmente como preso.
Por isso, nunca é demais repetir: a transformação da tortura em política de Estado só foi possível com o AI-5.
A segunda questão a ser destacada é que a implantação da ditadura e, posteriormente, a edição do AI-5 não foram obra exclusiva dos militares. Que ninguém se iluda: a ditadura militar teve apoio em parcelas da sociedade civil.
Aliás, não é difícil ver que não poderia ser de outro modo. Pela sua dimensão e complexidade, uma sociedade como a brasileira não viveria 21 anos sob uma ditadura se esta não tivesse um mínimo de sustentação fora dos quartéis.
O apoio ao golpe, à ditadura e ao AI-5 na sociedade civil foi majoritário? Certamente não. Mas existiu.
É importante ressaltar este fato, porque, da forma como a história às vezes é contada, parece que os militares eram como marcianos, ditando regras a um país que, todo ele, aspirava voltar à democracia. Não foi bem assim.
O grande capital, tanto nacional como estrangeiro, o latifúndio e segmentos das camadas médias (estes últimos, é verdade, de forma mais oscilante) tiveram expressivos ganhos materiais e apoiaram decisivamente a ditadura.
Recentes reportagens publicadas na grande imprensa desvendando apoios civis a atos dos militares são positivas – afinal, sempre é bom um país se reencontrar com a verdadeira história. Nelas vê-se que, até mesmo entidades respeitadas por sua tradição democrática – como OAB e ABI – fraquejaram em certos momentos e estenderam a mão aos ditadores.
Mas se é bom destapar este baú, está faltando algo: esclarecer também o papel da grande imprensa. Em sua maior parte, ela apoiou o golpe de 64 e, depois, o AI-5. Aliás, no caso deste último, o velho JB foi uma honrosa exceção, com uma primeira página histórica, editada por Alberto Dines, no dia seguinte ao AI-5. Ela lembrava que a véspera tinha sido o Dia dos Cegos e apresentava a previsão meteorológica: “tempo negro” e “temperatura sufocante”.
Mas – é preciso que se diga - na grande imprensa tal comportamento foi exceção. Por isso, lembrar os editoriais dos maiores jornais do país em 14 de dezembro de 1968, o dia seguinte ao AI-5, certamente contribuiria também para a memória nacional".

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

QUAL É A TRILHA SONORA DO LULA?


Antigamente, até as pessoas tinham trilha sonora. Um que lembro de cara, e isso vem dos anos 60: o mendigo que fazia ponto na Francisco Sá com Copacabana. Alvinegro até o último gole de Praianinha, Bigorrilho cantava uma conhecida marchinha de carnaval para arrecadar contribuições: “Lá em casa tem um bigorrilho/Bigorrilho comia mingau...”.
Outro biriteiro das antigas, Carlos Alexandre, o Chevrolet, fundador do ex-bloco Órfãos do Bar Natal, de Niterói, marcava suas impagáveis aparições com um sucesso de Luiz Melodia, perdigotejado na cara do primeiro conhecido que encontrava: “Se alguém quer matar-me de amor/ que me mate no Estácio...”.
No JB dos anos 70, o editor Luiz Mario Gazzaneo, comuna que ensinou muita gente boa a trabalhar em jornal, tinha seu prefixo: “Avanti poppolo! Alla riscossa! Bandiera rossa! Rossa bandiera!”.
No jornal O Globo, anos 80, quem ouvia ao longe a primeira estrofe de um grande sucesso da música portuguesa sabia que o diagramador Tião acabara de chegar. “Teus olhos castanhos...”, solfejava o bom crioulo. E mais não cantava.
A entrada do cantor Blecaute nos programas de auditório da pré-história da televisão também tinha trilha sonora: “Chegou o general da banda, êê! Chegou o general da banda, êá!”.
E isso não acontecia só no Brasil. Bob Hope, comediante americano dos anos 40 e 50, era recebido nos palcos ao som da balada Thanks for the memory. Marilyn Monroe ficou definitivamente ligada à interpretação pra lá de sensual de Happy birthday to you, sob medida para o amante JFK.
Em 1993, às vésperas do plebiscito sobre o sistema de governo, no encerramento de um comício dos monarquistas, perguntei de sacanagem ao ex-ministro Mário Henrique Simonsen, maníaco por óperas, qual seria a trilha sonora da Coroação. Ele respondeu todo feliz, com um berro que arrancou gargalhadas no Instituto dos Executivos Financeiros:

NABUCO!!!”.
Como não associar o líder trabalhista Leonel Brizola à Grande Fantasia Triunfal do Hino Nacional Brasileiro, composta no século XIX pelo alemão Gottschalk, cujos primeiros acordes anunciavam o horário eleitoral do PDT? Ou Juscelino Kubitschek à modinha Peixe Vivo? Ou Jânio Quadros a seu jingle em ritmo de dobrado Varre Vassourinha?
Acabo de ler que o presidente Lula fechou a pesquisa CNI/Ibope de dezembro com 73% de avaliações boas/ótimas, batendo novo recorde de popularidade. Qual é a trilha sonora do magnata?
Meu voto é para aquele samba genial de Miguel Gustavo gravado em 1955 pelo mestre do breque Jorge Veiga (Alô, alô, aviadores do Brasil! Aqui fala Jorge Veiga diretamente da Rádio Nacional! Queiram dar os seus prefixos para guia das nossas aeronaves!), com a participação de outro monstro da música popular brasileira, Ciro Monteiro.


domingo, 14 de dezembro de 2008

O ÚNICO DEFEITO DO BIP-BIP

A lua, antes da chegada de Neil Armstrong
Quando entro na casa de alguém, não reparo na bagunça e nem na decoração. Nem lá em casa faço isso. Minha mulher que o diga. Anteontem mesmo, ela me perguntou o que havia de novo no corredor e meu palpite foi uma lua pendurada no teto, mas ela está ali desde que o Hollywood não tinha filtro e o Chacrinha era em preto e branco. Mas abri uma exceção e, já que estou falando em preto e branco, quando fui ao Bip-Bip pela primeira vez fiquei encantado com a decoração do bar do Alfredinho, cujas paredes retratam episódios gloriosos da Humanidade. Minha alma também é forrada com aqueles recortes de jornais.
O excesso de efemérides quarentonas adiou para hoje o registro dos 40 anos deste pé-sujo fundamental do Rio de Janeiro, que foi comemorado em 13 de dezembro de 2008 com o lançamento de Bip-Bip, 40 anos – Histórias de um Bar, organizado por Marcelo Moutinho, Luís Pimentel e Francisco Genu. Peço licença para reproduzir um dos textos da obra, do meu amigo e escriba Eduardo Goldenberg, proprietário do www.butecodoedu.blogspot.com, um dos endereços mais visitados da blogosfera carioca e o nº 1 da Tijuca.
Com vocês, a verve do Edu. E para o Alfredinho, saudações alvinegras pelos 40 anos e uma noite de seu pequeno grande botequim que, segundo o autor da fábula abaixo, só tem um defeito.

Uma fábula, de porre, pro Bip-Bip

“Tijucano de quatro costados, como eu, tem um hábito insuportável, mas que é fabuloso ao mesmo tempo (espero que vocês me entendam, pô, ou parem por aqui mesmo!): o que há de melhor, em todos os sentidos (incluindo audição, olfato, tato, paladar e visão) está na Tijuca. O melhor supermercado? Na Tijuca, é evidente, onde os preços, ó, são mais em conta. A melhor padaria? Nem em Paris!, nem em Paris!, a melhor padaria fica na Tijuca. As mulheres mais bonitas do Brasil? Estão na Tijuca, caminhando pelas ruas da Tijuca, de saia e sandália de dedo, deixando a gente pra morrer... E por aí vai.
O que quero lhes dizer é que o maior elogio que pode partir de um sujeito que tem a água do rio Maracanã correndo nas veias, de um sujeito que sente bater o coração como o surdo de marcação do Salgueiro, é o seguinte:
- O Bip-Bip só tem um defeito...
- É? Qual?
- Não fica na Tijuca...
O cara, encostado no balcão do Rio-Brasília, templo do bairro zona-norte, ainda tenta argumentar, limão da casa na mão direita:
- Mas Copacabana é a Tijuca com praia...
- Que papo de corretor, malandragem! Tijuca é Tijuca. Mas falta o Bip-Bip no pedaço...
O sujeito, virando o limãozinho num só gole e pedindo outro ao Joaquim, exagera:
- Mas, então! O Joaquim é o Alfredinho sem a barba!!!
O Joaquim, num raríssimo momento de humildade:
- Quem me dera! Quem me dera!
Aos quarenta anos de idade, esse vagabundo — pra quem, como nós, ama os botequins, taí um tremendo adjetivo! — encanta desde 68 a dama da gargantilha acesa no pescoço (salve, Blanc!). Copacabana derrete-se desde então quando chega na Almirante Gonçalves e dá de cara com o malandro, à direita de quem vem da praia. Do alto, de longe, o Cantagalo a tudo assiste — e desde aquele tempo.
Os morros do Rio, donos de linguagem particularíssima, têm — vocês sabiam disso? — suas manhas, seus códigos. Paulo Emílio da Costa Leite, que virou encantado quando morava na Guajaratuba, na Tijuca, já nos contou sobre a história do Borel, da Formiga, do Turano e da Casa Branca, os quatro que se encontraram num botequim lá na Praça Saens Peña pra tomar um porre federal, de onde saíram abraçados.
Pois foi o Cantagalo, em 68, quem soprou pro Cabritos que a coisa ali embaixo valia a pena.
— Se essa rua fosse minha... — sussurrou Cabritos.
O da Saudade, passeando pelo Parque da Catacumba, sacou o clima e quis saber qual era. Animadíssimo, deu a dica ao Redentor, que já manjava tudo do alto, o onipresente, do outro lado da Lagoa, esticando o pescoço pra ouvir o burburinho antes da cidade acordar.
O Sumaré soube em segundos da novidade, desceu correndo a Redentor, estrada que tem o nome do Todo Poderoso de granito, e foi dar no Alto da Boa Vista. O Borel sentiu o movimento, estrilou, inteirou-se da boa nova e teve a idéia. A Formiga, coladinha a ele, piscou o olho em sinal de cumplicidade. O Turano, que ficou invocado, e a Casa Branca, que ficou com ciúme, também ouviram o tal nome — “Bip-Bip” — e trataram de espalhar o troço.
E deu-se o que o Paulo Emílio escondeu de nós: depois do porre federal, tomaram o metrô imaginário e saltaram, os quatro, cambaleantes, na também imaginária estação do Cantagalo, na altura da Miguel Lemos. Desceram em direção ao mar, dobraram à direita na Aires de Saldanha e desembocaram na rua indicada pelo Cantagalo, onde a coisa valia a pena... — isso, lembrem-se, no tempo em que o galo ainda cantava por lá (salve, Paulinho Pinheiro!).
Nunca mais esqueceram o Bip-Bip.
Pois, quando os quatro voltaram, a coisa chegou ao Salgueiro, correu Tijuca, e hoje o bairro todo se ressente disso, da falta que o Bip-Bip faz.
Eu, que nasci há quase quarenta anos — mais precisamente quatro meses depois do vagabundo em questão! — na Ordem Terceira da Penitência, de frente para o Borel, ouvi, juro que ouvi, ainda na maternidade, mamando no peito de mamãe com os olhos abertos, a voz do Borel, como se me ninando:
- Cresce, menino, cresce e atravessa o morro pra conhecer o Bip-Bip...
Um sábio, o Borel”.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2008

1965, OU CADA UM TEM O AMARCORD QUE MERECE

A ditadura ainda não tinha cara de ditadura no meu tempo de rato da Biblioteca Regional de Copacabana, que ficava no mesmo prédio do curso de inglês do IBEU. Eu adorava a pequena sala onde fui apresentado a muita gente boa, como Aníbal Machado (meu contista favorito), Érico Veríssimo (acho que sei até hoje detalhes sobre cada personagem da trilogia "O Tempo e o Vento"), Dostoievski (meu favorito disparado, li tudo), o inglês Graham Greene e os americanos Scott Fitzgerald e Hemingway. As bibliotecárias gostavam de mim, eu não atrasava a entrega, não emporcalhava o livro... Passei batido pelos franceses, alemães e italianos.
Fiquei meio esnobe na época. Parte, culpa do mergulho na obra do velho Fédor (ou Fiódor, depende, acho que preferiam assim para não lembrar da palavra fedor, mas nas traduções que li ele era Fédor), que me deprimiu bastante e contribuiu para que eu virasse gente. Parte, culpa dos loucos anos 20, da Era do Jazz. Fitzgerald também me jogou lá embaixo, com aquele mundinho besta, sem sentido, sem esperanças, embora divertido com tantas festas na Riviera Francesa e aqueles caras todos falando coisas inteligentes, aquelas mulheres malucas, como a Zelda, que certamente dariam para um estudante pobre como eu.
Em 1965, como no samba de Paulinho da Viola, "tinha eu 14 anos de idade" e ainda não havia "O Pasquim" e nem o programa do Adelson Alves, nas madrugadas da Rádio Globo. O "hebdomadário satírico" (assim era apresentado) abriu minha cabeça para a política e o programa de rádio me fez gostar de samba, quase tanto quanto eu passara a gostar de jazz New Orleans. O rádio tocava um dos sambas do quarto centenário do Rio de Janeiro, gravado por Miltinho com aquele vozeirão meio fanhoso ("Procurei pelo Rio a estátua do Estácio de Sá/ Fui aqui, fui ali, acolá/ E não sei onde está... Cadê a estátua do Estácio de Sá?").
Um dia, voltando à biblioteca, abri exceção para Stefan Zweig, austríaco e judeu. O título "Brasil, país do futuro" me capturou. Na época, achei o máximo. Acho que foi o primeiro brasilianista, mas hoje sou mais cativado pela vida dele, tão bem contada por Alberto Dines, do que pela obra que deixou. É bem verdade que não li mais de três livros de Zweig e não gostei de nenhum.
As primeiras gerações do pós-guerra foram apaixonadas por este país do futuro, mas houve um momento em que a fé se dilacerou. Tentando adaptar (e responder) a pergunta do personagem de Vargas Llosa em "Conversas na Catedral", vou nessa também: E aí? Qual foi o momento exato em que o Brasil se fodeu? Quando perdemos a esperança naquele país do futuro? Foi em 1889, com a Primeira República? Que não foi melhor do que a monarquia do velho e bom Pedro II... Teria sido em 1964? Acho que não. O golpe foi uma merda que deu sentido à vida de muita gente, que passou a acreditar na Revolução com inicial maiúscula. Ou, quem sabe, em 1989 e nos anos seguintes da Era Collor? Acho que está ficando mais quente.
Em 1965, eu morava em Copacabana e ia ao Rian ver as chanchadas da Atlântida. Um dia quebraram o Rian, acho que foi na estréia de "Help", com os Beatles. Não sei se foi em 1965.
Estudei naquele ano no Externato Atlântico, na Raul Pompéia quase esquina com Rainha Elizabeth. Fiz cada ano do ginásio em um lugar diferente. Política em 1965? O diretor do colégio reuniu a garotada no pátio para falar bem do candidato da UDN, Flexa Ribeiro, que tinha como vice um político chamado Danilo Nunes, autor de um livro estranho ("Judas, traidor ou traído?") que só folheei. Muito ruinzinho. O diretor recomendou que fizéssemos a cabeça dos nossos pais a favor do Flexa Ribeiro.
A direita, que quase sempre caminha junta, estava dividida: os partidários mais radicais do golpe queriam Amaral Neto, que "O Pasquim", anos depois, rebatizaria para todo o sempre como "Amoral Nato". Que maravilha aquela eleição! Ganhou o candidato do PTB, Negrão de Lima, um ex-embaixador, um senhor elegante, queimadão de praia (mulato?), que usava chapéu gelot. Não era propriamente um inimigo dos novos donos do poder, mas sua eleição significou uma derrota e tanto para a turma verde-oliva.
Milk shake no Bob´s da Domingues Ferreira, quando havia dinheiro. Sorvete de casquinha do Lopes, no Posto Seis, perto de minha casa (na Francisco Sá) e do cinema Caruso, o melhor do Rio, fora da rede Metro. Na praia, DaMate limão, vendido naqueles tambores e bebido naqueles copinhos cônicos com papel cartão que hoje só se encontra na Laranjada Americana da Travessa do Ouvidor. Acho que ainda encontra. Pelo menos, encontrava, até um dia desses.
Em 1965, em meio às festividades do quarto centenário, me despedi do Rio. A hepatite forçou um reencontro com meu pai em um lugar chamado Iturama, no Triângulo Mineiro. O ano seguinte, 1966, foi todo passado num colégio interno de Uberaba. Nas férias de dezembro de 1966, voltei para a Cidade Maravilhosa, agora com 401 anos.
Em que exato momento, o Brasil (como dizia o pessoal do Pasquim), o Brasil óóó, top-top-top? Será que hoje voltamos a ter esperanças? Eu acho que sim, apesar do governo e da oposição que temos.
Quer me deixar petista roxo? Bota o Artur Virgílio ou o Tasso Jereissati na TV. Ou o Mainardi falando gracinhas. Putz! Acho que o Mainardi faz o jogo do Lula.
Quer que eu vire tucano radical? Bota a base aliada na TV, o Sarney, os mensaleiros e aloprados.
Quer que eu pire? Bota o Lula no vídeo. Me dá nojo quando nosso líder fica saracoteando de um lado pro outro, despejando aquelas frases de efeito agora recheadas de vulgaridades. Eu falo palavrão pra caralho, mas nem eu aguento. Tá na cara que, no caso do Lula, é coisa de marqueteiro. Não tem espontaneidade alguma. Isso deve estar fazendo algum efeito bom de marketing. Em mim, é que não.
Mas há ocasiões em que o ex-quase-sucessor do Cavaleiro da Esperança (eu gostava muito mais do apelido do que do Prestes, que, pensando bem, eu nem gostava tanto) acerta. Como no dia em que foi à Academia, que comemorava o centenário de Machado de Assis e lançava a reforma ortográfica. Só que o assunto daquele dia foi o cassino financeiro. Coitado do Cícero Sandroni, alvejado pelos perdigotos presidenciais. No entanto, Lula falou o que eu queria ouvir naquele dia. Seja como for, tire as crianças da sala quando o presidente abrir a boca na fase atual. Eu sou maior de idade, não tem problema.
Ah, sim! Em 1965, eu não comia ninguém.

SIMAS GANHOU DE FATO E DE DIREITO

O leitor Eduardo Goldenberg acertou na mosca. Não pelo voto no Folha Seca Gelobol Clube, sacanagem dele. Embora formado por crianças (o mais velho ali chama-se Miguel Ferrari), o Comlurbão da Urca não cedeu um mísero craque para seleção alguma, daqui ou d´além mar. O acerto foi ao prever quem ganharia o livro Quando a bola era redonda, de Ivan Soter. Tirando Goldenberg, que optou pela galhofa, milhares de outros concorrentes acertaram, mas em parte, a resposta. Marcão Gramegna não respondeu, perguntou (“Seria o Botafogo?”). Perdeu por isso. Felipe Quintans jogou sujo ao reproduzir a primeira estrofe da Marselhesa alvinegra e teve o voto anulado, por tentar comprar o júri. Antônio Fernando Borges, este sim, foi na mosca, não só por citar o Botafogo, como por lembrar o Eletro Club, primeiro nome cogitado para o time dos pivetes do Largo dos Leões (embora jamais usado em competições oficiais, só nas primeiras peladas). Diego Moreira foi seguro (“Botafogo, do manequinho”). E Luís Antônio Simas foi ainda mais preciso, ao citar o Botafogo Football Club, nome do clube efetivamente fundado em 1904 (que só se tornaria Botafogo de Futebol e Regatas em 1942, quando da fusão com o Club de Regatas Botafogo, fundado em 1894). Chto dielat? Um sorteio, óbvio. Para que não pairassem dúvidas sobre o processo, recorremos à instituição reconhecida há mais de um século pela lisura ao lidar com prognósticos. E o nome que saiu do saco foi o de Simas, que recebeu o brinde de Rodrigo Ferrari. Mais uma vez, vale o que está escrito.

quarta-feira, 10 de dezembro de 2008

ESTÁ CHEGANDO A HORA DO SORTEIO

O Botafogo Football Club (antigo nome do Botafogo de Futebol e Regatas) e o Folha Seca Gelobol Clube são, até o momento, os dois escretes citados pelos milhares de leitores desse blog como a resposta correta à pergunta que foi feita aqui. O sorteio, que será realizado hoje à tarde pelos malandros maneiros que fazem ponto em frente à Livraria Folha Seca, na Rua do Ouvidor, definirá o ganhador do livro “Quando a bola era redonda”, do craque Ivan Soter.
ESTE?
O Botafogo Football Club, ainda sem estrela solitária, em 1940 - De pé: Carvalho Leite, Zezé Moreira, Graham Bell, Zezé Procópio, Nariz e Sarci. Agachados: Tadique, Aimoré Moreira, Pascoal, Nelson e Patesko


OU ESTE?

O Folha Seca Gelobol Clube, outro ninho de cascavéis e jaracuçus - De pé: Fraga, Vitor, Tinoco, Maurício Lito, Lucas, Santinho, Zé Preto, Digão e Miguel (revelação 2008). Agachados: Café, Carlos Papaire, Carlos Lopes, Sebastião Prata Júnior, Marcelo 'Cabañas' Freitas, Marcos Alvito, Heitor e Julinho com o infanto do Folha
A pergunta é facílima “Qual é o ÚNICO clube de futebol do mundo que foi fundado por crianças e adolescentes, existe até hoje, é conhecido neste e em outros planetas e que cedeu o MAIOR número de jogadores para seleções brasileiras que disputaram Copas do Mundo, em TODOS OS TEMPOS?”.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

AVENIDA BRASIL 500, O FILME QUE NÃO VAI PARAR

Silêncio: hospital
Fazer cinema custa caro e, além de grana, exige dedicação exclusiva dos realizadores, que têm de parar com outros trabalhos por algumas semanas, senão desanda tudo. Por isso, os três jornalistas que tiveram a fantástica idéia de produzir o documentário Avenida Brasil 500 deram uma paradinha rápida para ver qualé, ainda mais com essa turbulência toda na economia. Mas foi só um pit stop. Regina Zappa, Sérgio Sbragia e Rogério Reis – que foi ali na esquina comprar uma grande angular e já volta – estão mesmo decididos a peitar as rajadas fortes do temporal (como no falso anúncio de tempo ruim que prefaciou o AI-5) e realizar o filme que vai contar a história do JORNAL DO BRASIL, ou boa parte dela, passada no endereço que batiza o documentário.
Era o pior e o melhor endereço da imprensa carioca. Pior porque não tinha condução na porta, ficava no mais tumultuado dos logradouros, era distante de bares e restaurantes e, quando o prédio foi inaugurado, em 1973, ainda nem havia a Ponte Rio-Niterói. Mas os habitantes do nº 500 da Avenida Brasil, com bom humor, tiraram isso tudo de letra.
Quando nos acostumamos ao novo lar (a gente passava mais tempo lá dentro do que em casa), o estacionamento ganhou o apelido de “O Globo no Ar”, o corredor do 6º andar foi batizado como “Alameda Letício Câmara” e até o Pescoção de sexta-feira virou festa com queijos, vinhos e docinhos para amenizar o trabalho que às vezes varava a madrugada. E o “salário ambiente”? Inventaram até mesmo que da janela da Reportagem Geral se via o pôr-do-sol mais bonito do Rio de Janeiro.
Quem, senão os loucos que adoravam trabalhar no JB, diriam coisas assim?
Há alguns meses, o prédio – que vai virar hospital e tomara que seja dos bons – recebeu, pela última vez, a visita de cento e poucos jornalistas que ali trabalharam. Chovia forte, ventava muito, mas nem assim deixamos de nos despedir do elefante cinzento de frente para a principal entrada e saída do Rio. Curiosamente, um elefante feito de colagem de notícias era o símbolo do JB. Naquela tarde, a equipe filmou e gravou um monte de depoimentos. Foi um reencontro que não teria a mesma emoção em outros locais de trabalho. Depois, fomos parar na feira nordestina do Pavilhão de São Cristóvão para continuar lembrando as boas histórias vividas em nosso inesquecível Condado.
Os três parceiros e realizadores não param – ainda bem! – de trabalhar em outros projetos. Minha querida amiga Regina Zappa é autora dos textos do Cancioneiro Chico Buarque, em três volumes (dois com partituras de 124 composições), que a Editora Jobim Music acaba de colocar nas livrarias. Diferente do texto produzido para a série Perfis do Rio, da Relume-Dumará/RioArte, “que teve como objetivo mostrar Chico, a figura carioca, o ser humano”, este novo livro é mais linear e cronológico, com ênfase na trajetória musical da fera.
Rogério Reis, outro chapa dos tempos do JB e parceiro em vários trabalhos que vieram depois, além dos múltiplos afazeres em sua agência, a Tyba, participa nesta quarta-feira, 10 de dezembro, às 19 horas, da exposição fotográfica Direitos Humanos – A Declaração da Vida, no Centro Cultural da Justiça Eleitoral (na Primeiro de Março, nº 42, em frente ao CCBB). Ah! Ele avisou que quer ver todo mundo lá e, quando diz todo mundo, é TODO MUNDO mesmo. Eu, que não sou besta, vou lá ver a obra coletiva e secar umas taças.
Sérgio Sbragia, ex-repórter fotográfico da IstoÉ e Veja, foi premiado recentemente no Festival de Vitória com seu curta Nós somos um poema, cujo tema é a parceria de Vinicius de Moraes com Pixinguinha. O barato deste filme é que tem músicas desconhecidas do grande público, como o Samba fúnebre, regravado por Jards Macalé; a valsa Seule, com letra em francês cantada por Céu; e o samba afro Yemanjá, com Diogo Nogueira e As Gatas. Além, é claro, do choro Lamento (com os netos Marcelo Rocha Viana, do músico, e Mariana de Moraes, do poeta) e de Mundo melhor (cantado por Elza Soares).
Voltando ao Avenida Brasil 500, falta muito e falta pouco para concluí-lo. O que falta: Regina calcula que R$ 150 mil fechariam a conta, mas dá para ir fazendo devagar e sempre. Por que falta pouco? Ela e os dois parceiros estão animados e vão retomar em breve os depoimentos de alguns dos nossos colegas mais queridos que não puderam participar da última visita ao endereço mágico.

Na última visita ao prédio, o fotograma mostra Anabela Paiva e Bella Stal (à direita) deixando o 6º andar

O MEGA-ACELERADOR VAI ACABAR EM NITERÓI

Paranóicos do mundo inteiro estranham a falta de notícias sobre o LHC, o mega-acelerador de partículas construído na maior moita, durante mais de 20 anos, por centenas de cientistas e milhares de trabalhadores braçais de dezenas de países. O LHC entrou em funcionamento em setembro passado, num túnel circular subterrâneo, cavado na fronteira franco-suíça, com o objetivo de recriar os instantes iniciais do Universo, o Big Bang com trilha sonora e o escambau.
Lembram que em dezembro, ou seja, este mês, teríamos novidades? Que a engenhoca provocaria colisões de prótons na máxima velocidade, dizem que 99,9% da velocidade da luz? Cadê? Não se fala mais nisso? Morreu o assunto?
Essas colisões teriam como finalidade identificar o Bóson de Higgs, que uns e outros chamam de “Partícula de Deus”. Houve quem temesse que o treco poderia abrir buracos negros capazes de engolir o planeta, todo o Sistema Solar, o que inclui Niterói e São Gonçalo.
O LHC (também conhecido como Colisor de Hádrons) é um super-super-super-super-super-acelerador de partículas e hoje corre o risco de ficar que nem o sincrociclotron que o governo brasileiro comprou em Chicago na década de 40 e, sem saber o que fazer com aquilo, mandou para Niterói.
Em 2002, fui entrevistar César Lattes por outro motivo e, quando falei que morava em Niterói, o grande físico brasileiro, descobridor da partícula méson-pi e garfado na entrega do Prêmio Nobel de 1950 pelos ingleses, foi logo perguntando pelo sincrociclotron.
A resposta estava na ponta da língua porque, antes de viajar para Campinas, tratei de me informar sobre o assunto com dois amigos, o professor Antônio Serbeto, do Instituto de Física da UFF, e o historiador Emmanuel de Macedo Soares, que conhece todas as versões oficiais e extra-oficiais da terra de Araribóia nos últimos 400 anos.
César e Marta Lattes, foto minha

A história do sincrociclotron niteroiense é do senhor cacete! Pode ser considerado hoje um aceleradorzinho de meia tigela perto do LHC, mas na época era o que havia de mais "muderno", era "tequinologia de ponta"!
Só que quem o trouxe dos EUA não entendeu como funcionava e não soube explicar ao pessoal da Universidade o que fazer com aquela joça. César Lattes, que morou uns tempos deste lado de cá da Poça, num lugar chamado Matapaca, em Pendotiba (mas não teve nada a ver com a tal compra), teve um acesso de riso quando soube que o troço fora canibalizado e só então passou a ter alguma utilidade.
“Os meninos fizeram muito bem!”, reagiu.
Não foi só isso. Como o pessoal do governo (a UFF não teve culpa) não sabia o que fazer, colocaram o sincrociclotron numa sala grande, com a porta trancada a sete chaves. Um "burocra" foi contratado para tomar conta. Ganhava só para ir todos os dias para o “local de trabalho”, a bordo de um carro oficial, com motorista e tudo. Quando dava na telha, o cara abria cuidadosamente a porta para ver se estava tudo bem, de segunda a sexta, com horário de almoço. Antes de encerrar o expediente, às cinco da tarde, dava uma última espiada, tirava o paletó da cadeira e se mandava. Consta que, às sextas-feiras, até desejava “bom fim de semana” ao sincrociclotron. Isso até se aposentar. Depois disso, o sincro (vamos ser íntimos) já estava tão enferrujado que ninguém mais teve medo da coisa.
Bom, essa parte do burocrata não sei se é verdade, mas não duvido nada.
Antes que algum folgado aparecesse na salona e usasse o acelerador de partículas já meio mambembe para fazer cafezinho, os físicos da nova geração, já no tempo em que o lugar virou da UFF (Universidade Federal Fluminense), tiveram a boa idéia de partir para a ignorância e ir levando os pedaços do sincro que poderiam ter utilidade em seus trabalhos de pesquisa. Pelo menos, foi o que me contaram.
Ouvi muito boas histórias de Lattes e de sua mulher, Marta, que fora sua aluna na USP. Em 2002, moravam no bairro campineiro de Barão Geraldo, perto da Unicamp, não muito distante da casa do meu amigo Bruno Ribeiro.
Num país cheio de celebridades como o nosso – modelos, manequins, apresentadores de TV, rainhas de bateria, atores de Malhação, ex-namoradas do Ronaldo, todo mundo é celebridade! –, encontrei um ser humano verdadeiramente importante para a história desse planetinha chinfrin (é o terceiro à esquerda de quem vem do Sol no sentido Júpiter, não tem como errar) e, ao mesmo tempo, totalmente despido de frescuras.
Já era idoso, mas lúcido. O que ele esquecia (foi raro acontecer), Marta lembrava. Ouvia um choro de Pixinguinha num daqueles discos pesados de antigamente, devia ser gravação da Casa Edison. Ele detestava CDs e não confiava nem mesmo nos vinis que surgiram no pós-guerra. Dizia que o grave mais baixo e o agudo mais alto só eram registrados nos discões que colecionava.
Na parede da sala de sua casa, confortável mas sem qualquer luxo, havia um quadro de Portinari, amigão deles. Na tela, o artista retratou uma cena da família de Lattes – um acidente com arma de fogo que, por pouco, não custou a vida dele e do irmão, que brincava com a arma do pai. Uma terceira figura no quadro era a mãe de ambos, horrorizada com a quase tragédia. Foi tudo verdade e a pintura foi feita depois que Portinari ouviu a história.
Quando deixou Londres e veio para a América do Sul fazer a pesquisa de campo, num observatório dos Andes bolivianos - e que resultou na descoberta do méson-pi -, César Lattes teria morrido se pegasse o avião errado. A passagem já estava comprada na companhia inglesa British qualquer coisa. Vivia um tempo difícil, no pós-guerra, e a comida era escassa na Inglaterra (lembram do filme "Nunca te vi, sempre te amei", com Anthony Hopkins?). Quando soube que o serviço de bordo da Panair do Brasil era muito melhor, o cientista trocou de vôo para ter direito a um bife suculento. Fez bem: o avião inglês caiu na África e o contrafilé estava ao ponto. Ele ainda viveria muito tempo, só morreu em 2005.
A melhor história de todas, porém, ainda está por acontecer. Faltam exatamente quatro anos para isso.
Depois de ter sido jogado para escanteio por ocasião da entrega do Prêmio Nobel de 1950 (Cesar Lattes e o italiano Giuseppe Occhialini, seu parceiro nas descobertas, tiveram os nomes omitidos e quem ficou com os louros da descoberta do méson-pi foi o chefe deles no laboratório da Universidade de Bristol, Cecil Powell), um dia encontrou-se com o físico dinamarquês Niels Bohr, Prêmio Nobel de 1922, pioneiro da energia nuclear e inimigo da bomba atômica.
Bohr disse-lhe que foi um absurdo não ter sido premiado e que sabia o porquê. Prometeu contar tudo numa carta que seria aberta 50 anos depois de sua própria morte. A carta, se existe mesmo, se não foi lero-lero do escandinavo, pode estar escondida em alguma gaveta do Instituto Niels Bohr, em Copenhague.
Se, até lá, o mega-acelerador LHC não der chabu e o planeta não desaparecer no meio do Nada Cósmico, os adeptos de teorias conspiratórias, entre os quais me incluo, vamos aguardar, ansiosos, a chegada do dia 18 de novembro de 2012 (o sábio dinamarquês morreu neste dia e mês em 1962) para saber o porquê da sacanagem que fizeram com esse brasileiro tão importante.
Tão importante e, ao mesmo tempo, tão simples, que virou até personagem de samba-enredo da Mangueira (“Ciência e Arte”, 1947), de autoria de Cartola e Carlos Cachaça.

César Lattes e o entrevistador em 2001, foto de Marta Lattes

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

QUANDO A BOLA ERA REDONDA


Tem um sujeito que está de sacanagem com a gente. Comigo e contigo, que gostamos de ler os textos excelentes que produz sobre um assunto que domina: futebol. Ivan Soter – guardem o nome da fera, caso ainda não o conheçam – já era cultuado por causa de sua “Enciclopédia da Seleção”, que conta tudo sobre todas as equipes que, entre 1914 e 1994, vestiram o único e autêntico manto sagrado – a camisa do escrete canarinho.
Pois é, ele lançou há algumas semanas mais uma obra fundamental sobre o passado do futebol brasileiro, “Quando a bola era redonda”, caprichosamente editada pela Folha Seca, a livraria e editora do Rodrigo Ferrari e da Daniela Duarte. O livro já está na cabeceira de todos os verdadeiros especialistas no balípodo e até na estante de um monte de zé-manés, como o blogueiro que vos fala.
Eu gostei tanto que já o reli para saborear os textos primorosos sobre Flávio Costa, Gentil Cardoso, Zagallo, Garrincha, Zizinho, Fleitas Solich e outros craques e técnicos que fizeram história no futebol brasileiro. Como todo bom livro, este tem e comprova uma tese: a de que goleiro bom é goleiro canhoto.
Vejam a lista: Oberdan, Barbosa, Gilmar, Castilho, Raul, Júlio Cesar... só pra falar dos brasileiros. Ele acrescenta um montão de nomes que defenderam as seleções de seus países, entre eles o alemão Schumacher. Como ele não colocou o russo Yachin na relação, já sei que pelo menos um goleiro destro, o Aranha Negra, como boa exceção (e põe boa nisso!), quebrou a regra.
Depois de tanta firula, vão me perguntar por que razão o Ivan Soter está de sacanagem com a gente? Respondo de bate-pronto: porque já está nos devendo, para MUITO em breve (rala aí, Ivan! te vira, Digão! dá um jeito, Dani!), a continuação natural do maravilhoso “Quando a bola era redonda” (II, a Missão), para deitar e rolar sobre outros gênios, talentos e figuraças das quatro linhas e da boca do túnel como Fausto, Heleno, Quarentinha, Perácio, Coutinho, Jair Ventura (Jairzinho), Jair da Rosa Pinto (Jajá), Zico, Danilo, Dirceu Lopes, Jaguaré, Carvalho Leite, Tim e por aí vai...
Pode ser, Ivan?
Enquanto isso não acontece, este blog, devidamente autorizado pelo Rodrigo Ferrari e pela Daniela Duarte, vai sortear um exemplar de “Quando a bola era redonda” entre seus leitores, cuja quantidade ainda não sei porque não foi instalado o contador. Aliás, já foi, mas cometi um erro e tirei. Amanhã, terça-feira, 9 de dezembro, já vou contar quem entra aqui. Foi o que minha Dinda de Blog prometeu.
Para ganhar o livro, basta responder uma pergunta facílima:
“Qual é o ÚNICO clube de futebol do mundo que foi fundado por crianças e adolescentes, existe até hoje, é conhecido neste e em outros planetas e que cedeu o MAIOR número de jogadores para seleções brasileiras que disputaram Copas do Mundo, em TODOS OS TEMPOS?”.

sexta-feira, 5 de dezembro de 2008

MAMÃE DOLORES NO LARGO DA ABOLIÇÃO

Foi há muito tempo, nos anos 70, quando começaram a surgir cineclubes em todo o Rio de Janeiro. Eu tinha o meu, junto com dois colegas do curso de cinema da UFF, Albertino da Paz Ferreira e Francisco Sergio Magalhães Moreira, o Chico Moreira. Albertino chegou a ser um bom operador de som, mas trocou o cinema pelo Banco do Brasil. Chico foi pesquisador e montador dos documentários Os Anos JK e Jango, ambos dirigidos por Sílvio Tendler.
Nosso cineclube tinha o nome de Ademar Gonzaga – o homem da Cinédia, um dos pioneiros do cinema brasileiro - e ficava no bairro da Abolição, onde eu havia passado a infância. Fizemos acordo com uma escola e lá exibíamos, no tempo do Médici e do Geisel, o que o Cinema Novo e o Neorrealismo produziram de melhor - Gláuber Rocha, Nelson Pereira dos Santos, Rui Guerra, Roberto Rossellini, Vittorio de Sica, Michelangelo Antonioni, Mario Monicelli e outros.
Finda a exibição, começava o debate, porque este era o objetivo inconfesso da maioria dos cineclubes – usar o cinema para provocar, fazer as pessoas pensarem primeiro no filme, depois na própria vida e na política. Não por acaso, muitos cineclubistas eram ligados a partidos clandestinos. Tarefa da organização. Hoje, isso pode soar infantil, mas a gente levava a sério. Nós e o pessoal do Cineclube Glauber Rocha, em Santa Teresa; do Cineclube Grande Otelo, no alto do Salgueiro; do Macunaíma, na ABI; do Cineclube do Leme, semente dos cinemas do grupo Estação.
Flashback. Afinal, falamos em cinema. Para entender a história que vou contar, é preciso voltar mais ainda no tempo, até 1964. Eu era um guri de 12 anos e fiquei sabendo do golpe porque meu avô de criação, seu Correia, mulato, ex-capoeira regenerado, chofer de táxi e brizolista roxo, passou a noite de 31 de março acordado, e eu do lado dele, ouvindo notícias terríveis pela Rádio Mayrink Veiga e torcendo para que as forças leais ao Governo João Goulart derrotassem o inimigo. Só que não havia forças leais. Era tudo traíra!
Na manhã seguinte, jogando bola na ladeira onde morávamos, vi os tanques passando a poucos metros lá de casa, dezenas deles, lá embaixo na Avenida Suburbana. No portão, dona Adelina, minha avó de criação, semi-analfabeta e desbocada, fez o comentário que definiu os 20 anos seguintes:
- Puta que os pariu, vai começar a pouca vergonha!
Na minha idade, o golpe não tinha a menor importância. Em maio de 1964, adoeci. Peguei hepatite e fiquei o resto do semestre em casa lendo Monteiro Lobato e o Tesouro da Juventude, e comendo tudo quanto é tipo de doce. Era este o tratamento na época: encher a criançada de doces. Foi então que ganhei um presentaço da minha mãe, um gravador de rolo cuja marca e modelo nunca esqueci, Transicorder TR 300. Espetáculo!
Mamãe Dolores (Isaura Bruno)e o galã Albertinho Limonta (Amilton Fernandes), na novela exibida em 1964 pela TV Tupi
Quando cansei de mexer no brinquedo sozinho, chamei a molecada inteira da rua para brincar no portão lá de casa e foi aí que alguém teve a idéia da gente fazer uma novela no gravador. Na TV estava passando O Direito de Nascer. Nós faríamos uma imitação, como se fosse para o rádio. E cada amigo tinha um papel.
Sabe o garoto que é dono da bola e escolhe o ataque ou a ponta direita? Pois é. Meu personagem, evidentemente, só podia ser o principal. O do galã. O mais velho da turma, um tal de Condorcet, ficou sendo a mocinha. Por ser o mais parrudo, ninguém duvidaria da masculinidade dele, apesar de certo exagero nos falsetes. Ai se duvidassem!
Evidente que a novela era uma farra. Misturava situações do próprio enredo lacrimejante que estava sendo transmitido pela TV, política – o pouco que sabíamos – e escatologia até não mais poder. Levando em conta o nosso altíssimo nível intelectual, alguns diálogos eram na base do “Querida, vou comer você!”. “Ó meu amor, põe tudo, mas vê se enfia direito essa porra!”. Coisas do Condorcet, que tinha idade e cara de pau para comprar as revistinhas do Carlos Zéfiro e emprestava para o resto da turma.
Mas a gente também misturava política porque a política era muito presente naquele tempo. Nossa ladeirinha era conhecida por ter um dos melhores carnavais do subúrbio, com palanque organizado por um eterno candidato do PTB, seu Zappone. Por causa disso, surgiam diálogos mais elaborados, tais como “Querida, vou comer você e vou botar na bunda do Lacerda!”, “Ó meu amor, me faz um filho e arromba aquele filho da puta da UDN!”. Enfim, a coisa tinha estilo.
Eu tinha que dar pausa na gravação (só eu podia mexer no aparelho, pombas!) porque todo mundo caía na gargalhada. Os coroas da rua não acreditavam quando viam a turminha da Cantilda Maciel, que vivia saindo na porrada com a turminha da Macedo Braga, ali quietinha, todo mundo concentrado, sentado na escada, conversando. Poucos entendiam o que estava se passando ali. Desconfio que ninguém mais no bairro tinha gravador.
Eram dois os principais papéis femininos. O da namorada do galã e o da empregada negra da família cubana ou mexicana, sei lá. Era a Mamãe Dolores. Personagem que foi entregue ao único garoto negro retinto do grupo, o Joel (que gostava de ser chamado de Joe, como os otários americanos dos filmes). Joe PQD, que tinha então uns 14 anos, sonhava com o pára-quedismo, daí a segunda parte do apelido.
Joe morava no Morro do Urubu, para onde volta e meia a turma inteira se mandava e passava tardes inteiras soltando pipa. A avó dele não deixava faltar o refresquinho e o pão com goiabada na hora do lanche.
Só que o Joe era um desastre como ator. Ninguém ria de suas falas, ele esquecia os falsetes, era um desastre. Outra coisa: ele só admitia ser chamado de Mamãe Dolores durante as “gravações”. Fora delas, ameaçava sair na porrada. Mas acabou se conformando com o apelido cruel. Tempos depois, se um de nós o chamasse de Mamãe Dolores, depois reduzido para Mamãe, tudo bem. Mas ai de quem, não sendo da turma, se atrevesse a falar assim...
De volta para o "futuro", ou seja, aos anos 70. Numa noite de domingo fiquei até mais tarde no cineclube. Os outros “sócios” saíram antes por algum motivo. O lugar ficou deserto. Dez e meia, sozinho na Avenida Suburbana, esperando o ônibus para o Castelo (e no Centro pegaria outra condução até Copacabana, onde morava na época), só não tive grande medo porque aquela era a minha área e os índices de violência eram baixíssimos. Medo, naquele tempo, era mais ou menos como hoje em dia: a gente tinha medo, sim, mas da polícia. No caso, da polícia política, mesmo sendo apenas tarefeiro de alguma organização.
Foi então que do nada surgiu um sujeito armado, um negro. Veio direto na minha direção: - Passa a grana senão vai morrer!
Devo ter ficado trêmulo como qualquer pessoa normal, mas a sensação ruim passou logo.
- Mam... Mamãe Dolores??
Mais de dez anos depois da novela. Um abraço forte de velhos camaradas, amigos de infância. E muita tristeza do Joel, que nunca entrou para o corpo de pára-quedistas. Nem do Exército fez parte porque era arrimo de família. Com a morte da avó, e depois do padrasto, que morreu atropelado por um caminhão, ali mesmo na Suburbana, perto do ponto de ônibus, ficou com Joel a incumbência de ajudar a mãe e os irmãos mais novos. E ele nunca deu conta daquele papel direito. Vivia sendo despedido dos empregos de merda que arranjava.
Chorou. Aliás, choramos.
Quando as lágrimas secaram, lembramos os bons tempos. E foi então que fiquei sabendo que o Condorcet havia terminado Medicina. Que o Arnaldo tinha se casado com a Ângela, a menina mais bonitinha da rua. Que o Bebeto morava no Méier com a irmã e o cunhado. E que o Minguinho era funcionário da Abolição Veículos, ali na esquina da Rua Silva Xavier, a rua do Colégio Guarani, que cedia suas instalações para o Cineclube Ademar Gonzaga. Alguém havia morrido de meningite na epidemia que a ditadura proibiu de divulgar. Eu sabia, porque naquele tempo já trabalhava no JB.
Até que caímos na realidade. Eram quase onze da noite e a polícia – agora a preocupação era com a civil ou a militar - poderia aparecer de repente. Juro que pensei na integridade daquele amigo de infância, um camarada que levou uma banana do destino. Comecei a torcer pela chegada rápida do Castelo-Padre Nóbrega. Só então me dei conta do perigo:
- Porra, Mamãe! Guarda essa arma!
Joel também havia esquecido de seu (hoje) ridículo revólver calibre 32, que continuava apontado na minha direção.
- Desculpa, Zé. Nem percebi.
A emoção tinha passado. Agora eu estava puto com a ditadura (sim, a culpa do Joe ter virado assaltante era da ditadura, de quem mais?) e cansado. Cansado e impaciente. Eu queria ver a Abolição pelas costas.
- Mamãe, não é melhor você se mandar?
Até o fim da vida não vou esquecer a resposta daquele pobre sujeito, já na casa dos 30 anos:
- Não, camarada. Vou ficar até chegar teu ônibus. Tá tarde ... tem dado muito assalto aqui...
(Mais um texto já publicado no blog Conexão Irajá)

DONA IVONE LARA NO FUNDO DE PENSÃO

Dona Ivone Lara todo mundo conhece. Autora de pérolas do samba ("Acreditar", "Sonho meu", "Força da imaginação" etc. etc. e põe etc. nisso!), primeira compositora a vencer um concurso de samba-enredo ("Cinco bailes na história do Rio", em 1965, no querido Império Serrano), uma artista genial que ralou décadas como enfermeira do hospício do Engenho de Dentro, lotada na terapia ocupacional, o setor que inventava diversão para os internos.
Mulher vigorosa, de uma bondade extrema, aos 87 anos ela continua sendo um esteio não só da nossa música popular, como também de um monte de gente que depende dela, começando por nós, os fãs incondicionais.
A vida inteira dependeram de Dona Ivone. No Hospital Psiquiátrico Pedro II, tinha carta branca da doutora Nise da Silveira para fazer arte com os pacientes. Pois era justamente o que ela fazia: pegava o cavaco e botava os malucos para sambar. Alguns até ficaram bons da cabeça, pois não eram doentes do pé. “Ficaram bonzinhos que só vendo”, me disse Dona Ivone, que tem essa mania de terminar algumas frases com a expressão “que só vendo”.
Há cinco ou seis anos, Dona Ivone abriu o baú do Museu do Inconsciente e me contou suas histórias do hospício, uma tarde inteira, na quadra do Império Serrano, sentada no camarote que leva o nome da Tia Eulália. Nesta época, eu era editor do jornal impresso e do site de um fundo de pensão e a entrevistei porque estávamos fazendo o relatório anual da instituição, cujo tema era a terceira idade produtiva. Terceira idade produtiva era com ela mesma, que sustenta tanta gente.

Para encurtar: conversa vai, conversa vem, descobri que um irmão de Dona Ivone, o falecido Waldir José da Silva, havia trabalhado na grande empresa patrocinadora do fundo de pensão. Fiquei com aquilo na cabeça e pesquisei no trabalho sobre o moço. Dois dias depois, um atuário amigo me procurou para dizer que havia localizado a ficha.
O Waldir deve ter sido um figuraço. Era solteiro e, ao passar desta para a melhor, deixara várias mulheres que entraram com requerimento de pensão, todas alegando que tinham sido companheiras dele. Nenhuma conseguiu marcar o gol. Isso porque o Waldir fora bem claro em seu pedido de deixar o pecúlio para a única irmã, que o criara como se fosse uma segunda mãe, e somente para ela, para mais ninguém, a Ivone da Silva.
Durante anos a fio, o fundo de pensão procurou a irmã do Waldir e nada. O sobrenome era diferente. Ivone Lara era o nome artístico, bingo!
Pois não é que havia uma bela grana guardada em nome dela? Dona Ivone vibrou. Um dia marcamos para que ela fosse lá receber a bufunfa. Foi uma festa no prédio da Rua do Ouvidor. Irradiando simpatia, a antiga componente do Prazer da Serrinha e veterana integrante da ala das baianas e da ala dos compositores do Império Serrano adentrou o edifício onde funciona o fundo de pensão como se estivesse evoluindo na avenida.
Todos queriam tocá-la, beijá-la, pedir autógrafos.
Quando me viu, cantou serelepe, ao lado da sempre presente empresária Miriam, viúva de Abel Ferreira:
“Foram me chamar/ Eu estou aqui, o que é que há!”.
E foi comigo e com mais dois assessores de imprensa do fundo de pensão até o gabinete do presidente da entidade, que queria conhecê-la. Ótima pessoa, aquele presidente. Sério, honesto, formal e tímido. Só que, de repente, ficou sem saber o que falar com a grande compositora, e foi então que deitou a discorrer sobre seu time do coração, o Corinthians.
Queria aproximar-se mais daquela pessoa do povo, daquela artista popular... Como nada sabia de samba, engrenou um papo de futebol, assunto que dominava ... menos ainda.
Dona Ivone, por sua vez, diante daquele senhor refinado e boa gente, também perdeu o repertório. Resolveu rememorar uma grande figura que conheceu, o Major Paredes. Não sei por que cargas d´água ela lembrou desse Major Paredes, que só muito tempo depois descobri ter sido um dos jurados que deu o primeiro título de escola de samba campeã ao Império Serrano.
“O senhor ia gostar muito do Major Paredes, seu presidente. Era educado que só vendo”...
Ficaram os dois sem assunto – a sambista e o presidente do fundo de pensão.
E o jeito foi um falar do Corinthians, como se tivesse passado a vida inteira numa arquibancada, e a outra tecer elogios a um militar falecido há mais de 50 anos, pessoa que ninguém ali tinha ouvido falar.
Eu e meus dois colegas nos segurávamos para não cair na gargalhada. Era preciso encerrar logo aquela audiência. Alguém lembrou que estava na hora do almoço e que iríamos comemorar com Dona Ivone e sua empresária num restaurante de comida mineira. O presidente do fundo de pensão não podia ir, por causa de outro compromisso ou porque estava com medo de ficar mais algumas horas sem saber o que dizer.
Mas foi aquela menção à comida mineira que salvou a “conversa”.
“Ah, um feijãozinho preto carregado! O senhor gosta, seu presidente?”, tascou Dona Ivone, para fechar com chave de ouro a conversa de maluco.
“Ah, sim, gosto muito! Na minha terra botam um ovo e chamam de virado...”.
A sambista ficou meio sem jeito. Deu para perceber no ato que ela havia entendido outra frase e antes que Dona Ivone perguntasse a qual dos veados o presidente estava se referindo – um ou dois funcionários do fundo de pensão que testemunharam a conversa tinham essa opção sexual -, peguei-a pelo braço e entramos no elevador.
No elevador, Dona Ivone relaxou:
“Que senhor simpático! Vai perder um feijãozinho que só vendo, né mesmo?”.
(Esse texto foi publicado originalmente no ex-blog Conexão Irajá, pilotado por Eduardo Goldenberg, Fernando Szegeri e Fernando Toledo)

A VELHA QUE SABIA TUDO DE COMUNISMO


Maneschy (de óculos), no tempo em que era assessor de Leonel Brizola

No dia 7 de março de 1990, liguei para Osvaldo Maneschy, ex-colega e amigo dos tempos do JB da Condessa. Ele já atendeu o telefone adivinhando o que eu queria:
– Já sei, seu merda! Tás querendo carona amanhã para o cemitério, não é, seu bosta? Tá certo, ô viado! Morreu o Prestes, né? Que merda, hein? Tantos filhos das putas (só o Maneschy coloca plural nesta expressão carinhosa) no mundo e vai morrer logo o velho Prestes! Puta que pariu!!!
Apesar da torrente de palavrões, todos foram ditos em voz baixa, sumida, quase chorosa, como se já estivesse no velório.
Maneschy, que hoje é o presidente da FLB-AP (Fundação Leonel Brizola-Alberto Pasqualini), não é daqueles pedetistas que têm adesivo do Brizola no vidro traseiro do carro até hoje. Colocou também no dianteiro e no retrovisor, no bolso da camisa e em cada porta de seu apartamento em Niterói.
Quando Brizola morreu, pegou o avião seguinte ao que levou o corpo do líder trabalhista a São Borja. Mas nunca digam ao Maneschy que o Brizola morreu. Desde que tal fato foi noticiado na imprensa, ele atribui a “falsa informação” a uma campanha promovida por “interesses transnacionais”.
Voltando ao dia 7/3, assim como eu, ele já tinha compromisso para o dia seguinte: acompanhar a última marcha do Cavaleiro da Esperança. A bordo da Brasília amarela, ou melhor sépia, chegamos ao São João Batista lotado de gente, cheio de velhos e novos militantes comunistas, inclusive alguns que o expulsaram da Secretaria Geral do Partidão.


Teria sido uma cerimônia singela, sofrida e austera, última homenagem ao velho combatente, se não fossem as intervenções de uma senhora de oitenta e poucos anos.
Alguns discursos foram ouvidos por nós, que estávamos a poucos metros da sepultura, sempre acompanhados pelo refrão “De Norte a Sul! De Leste a Oeste! O povo inteiro grita! Luiz Carlos Prestes!”.
Como de praxe, começou a chamada de alguns nomes de comunistas já falecidos, muitos deles assassinados pelo regime militar:
– Orlando Bonfim!
PRESEEENTE! – respondeu aquele povo todo, em uníssono.
– Davi Capistrano!
PRESEEENTE!
– Luís Inácio Maranhão!
PRESEEENTE!
Até agora, nomes conhecidos. Foi então que as surpresas começaram. A velhinha puxou da memória mais nomes:
– Olga Benário! – berrou a senhora, de aspecto humilde, aquela Pasionária, quem sabe uma militante dos anos 40-50 esquecida de todos.
PRESEEEENTEEEE! – este foi o mais emocionado dos coros.
Uma explicação: nos atos públicos durante a ditadura, era comum se fazer a chamada dos mortos. Dependendo da manifestação, eram citados apenas os militantes assassinados durante o período militar. A alemã e judia Olga Benário, primeira companheira de Prestes, morrera num campo de concentração na Europa, com a conivência do Estado Novo getulista.
No entanto, já não vivíamos sob ditadura em 1990 e a grande figura de Olga Benário se tornara mais conhecida de todos, desde a publicação da biografia escrita por Fernando Morais.
Pensando bem, já que aquele era o enterro de um combatente de duas ditaduras, nada mais justo do que acrescentar ao listão nomes antigos como o de Olga.
Os sorrisos se abriram. Como é que ninguém havia pensado nisso antes? A velhinha, de voz poderosa, prosseguiu:
– Serafim de Oliveira!
PRESEEENTE!
– Manuel da Silva!
PRESEEENTE!
– Francisca de Souza!
PRESEEENTE!
Os comunas mais antigos se entreolhavam. Tinham a mesma idade da puxadora do coro ou quase, e pareciam constrangidos. Quem eram essas pessoas que nem mesmo eles conheciam? Seria a velhinha tão das antigas e importante que lembrava até dos codinomes do tempo do Getúlio?
Na dúvida, todos diziam:
PRESEEENTE!
Mas tinha gente segurando o riso e soprando baixinho no ouvido dos outros:
– Kananga do Japão...
Tava explicado: tirando Olga Benário, revivida por Betina Viany, os demais eram personagens (fictícios) do núcleo dos comunistas da novela exibida na época pela TV Manchete.
A cerimônia foi encerrada logo em seguida. E a “veterana comunista” foi tirada de cena pelo neto, que se desculpou:
– É que a vovó não perde um capítulo!

quarta-feira, 3 de dezembro de 2008

A EDUCAÇÃO CONTRA O RACISMO

O que a Educação pode fazer para sepultar o racismo? Essa pergunta foi feita na lata a dois intelectuais e polemistas pra lá de respeitáveis: Nei Lopes e Demétrio Magnoli.
Discordam em quase tudo o que diz respeito à questão, começando pela política de cotas. Mas concordam num ponto: o racismo deve ser combatido nas salas de aula.
Ambos oferecem argumentos substanciais aos leitores de seus artigos, publicados com freqüência em grandes órgãos da imprensa.
Aspas para Nei Lopes, que nos anos 70 trocou a carreira de advogado para tornar-se um dos grandes nomes da música popular brasileira. Ensaísta, ficcionista, dicionarista e militante pelos direitos civis dos afrodescendentes, ele propõe:
“O que a Educação pode e deve fazer é desconstruir o racismo.
Primeiro, admitindo que a África foi berço de civilizações importantes, que influíram decisivamente nos destinos da Humanidade.
Admitindo isso, vamos deixar de estudar o contexto africano apenas a partir da escravidão instituída pelos europeus e a partir de sua ação imperialista e genocida.
Esse é o ponto fundamental: estudar, ensinar a História da África.
A partir daí é que vai se começar a levantar a auto-estima do povo negro e desconstruir o racismo, inclusive abrindo a Universidade aos afrodescendentes, para que nós sejamos, de fato, as vozes dessa revelação”.

Aspas para Demétrio Magnoli, sociólogo, doutor em Geografia Humana pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP e colunista dos jornais “O Estado de São Paulo” e “O Globo”, que propõe:
“A Educação pode contribuir para o combate ao racismo se as aulas de Biologia forem bem ministradas. Elas mostrarão que a crença em raças humanas é um fruto da ignorância.
A Educação pode contribuir para o combate ao racismo se as aulas de História forem bem ministradas. Elas mostrarão que o racismo é um produto histórico recente, do século XIX, e que a raça é uma invenção do racismo.
Acima de tudo, a Educação pode contribuir para o combate ao racismo se a escola for um espaço de afirmação da cidadania, cuja base é o princípio da igualdade perante a lei.
Mas, no Brasil das cotas raciais e da classificação racial compulsória dos estudantes, a escola tende a se converter num espaço de fabricação da crença em raças.
Apesar da Biologia e da História”
.

E você, o que acha?