“Dias antes de morrer a Estrela Dalva – ela estava internada direto num hospital de Copacabana – um repórter de uns 22 anos, primeiro emprego e poucas saídas para coisas importantes, recebeu a incumbência de registrar alguma coisa nova no panorama que se arrastava tristemente para o fim: a cantora ia mal, piorava e não morria, atrasando os necrológios feitos por todas as rádios do Rio de Janeiro. A ordem fora deixada à tarde; o repórter chegou, pegou um desajeitado gravador a tiracolo e foi pro hospital.
Lá, coleguinhas disputavam nos corredores uma entrevista com artistas, com o filho da estrela, Peri Ribeiro, e com quem mais importante chegasse. O foca, envergonhado com o tamanho do gravador, resolveu escondê-lo na portaria e ficou andando pelo corredor, no meio do qual estava o quarto da paciente. Ouvido atento, soube de uma enfermeira que ela sofrera várias hemorragias e precisava de sangue.
Assim, deslizou suavemente para as proximidades do quarto – a ausência do gravador ajudava nisso – entreolhou o que ia lá dentro e esperou uma chance, que chegou meia hora depois. Peri, o próprio Peri, ajoelhou-se no corredor, pensativo, ao lado do repórter que, cautelosamente, falou com ele estas possíveis palavras:
“Peri, soube que a Dalva precisa de sangue, é verdade?”.
Ele olhou o moço sem saber o que este fazia ali, talvez fosse um fã, um empregado da casa...
“Sim, outra hemorragia, ontem...”.
“Olha – disse o garoto – quem sabe se a gente fizer um anúncio na Rádio Nacional as pessoas acudam e não haja problema de doação? Sua mãe foi uma das maiores estrelas da Nacional, quem sabe!?”.
O cantor coçou o queixo e fez uma cara de interrogação (“como?”), o que fez o outro se identificar:
“Sou repórter da Nacional, deixei um gravador na portaria, você faz um pedido e quem sabe o problema será resolvido; e aí?”.
Peri Ribeiro chamou o irmão – este é que parecia decidir as coisas por ali – cochichou com ele, voltando-se para o foca com um olhar triste e condescendente, não precisou falar. O rapaz atravessou o salão sob o olhar curioso de alguns colegas e voltou com o imenso gravador de rolo, ajoelhando-se ao lado dos filhos da cantora. O pedido, feito por Peri, não tinha um minuto de duração, mas era claro, não será preciso escandi-lo. O repórter voltou à rádio, preparou a matéria, entregou ao editor com o texto retirado do gravador e foi embora. Tinha prova na universidade onde era aluno de Jornalismo.
No dia seguinte, ao chegar ao trabalho por, volta do meio-dia, encontrou o diretor da emissora (o velho e exagerado Arakem Távora) de pé, à frente de todos os repórteres da tarde, alguns dos tempos de ouro da Nacional, e ouviu assustado o primeiro elogio de sua curta vida de jornalista, algo assim:
“Que sirva pra todo mundo. Esse garoto está aqui há poucos meses e teve a coragem de enxergar uma notícia onde ninguém viu. A gravação vai ao ar de hora em hora, o hospital está jorrando sangue. Parabéns!”.
Vendo agora a minissérie da Globo e as cenas – irretocáveis – feitas no quarto do hospital onde a estrela padecia, aquele repórter (61 anos e com o pau ainda duro) estica a cabeça para ver na TV se aparece o corredor e, encostado na parede em frente, um jovem de 22 anos assustado e inseguro com o que tinha feito”.
O texto do Varela termina aqui. E o comentário a quem me referi na introdução, de outro jornalista e professor da UFF, João Batista de Abreu, em resposta ao e-mail do nosso amigo comum, diz o seguinte:
“Varela,
Gostei muito da história. Estava acreditando até aquela referência ao pau duro, aos 61 anos.
Aí vi que era ficção.
Abraços,
JB”.